Três metas traçadas e duas conquistadas
O texto dessa semana não será tão sombrio e triste quanto o da semana passada. Na verdade, não será nada sombrio. Muito pelo contrário, será um texto de descobertas e conquistas e uma reflexão sobre o conceito de cedo e tarde que certas coisas acontecem em nossas vidas. Falarei aqui sobre três episódios que me marcaram e que foram bem complicados de aceitar no início, mas que hoje agradeço por tê-lo feito. Ao menos, em dois episódios. O terceiro ainda não teve solução, mas terá. São eles: meu começo na fisioterapia, a compra de uma prótese auditiva e a mudança da minha cadeira de rodas manual para uma motorizada. Coloquei em ordem cronológica, mas vou invertê-la para começar com a que ainda não teve solução, cumprindo minha promessa de não fazer outro texto triste. A passagem para a cadeira de rodas motorizada tem sido bem mais difícil e desafiadora do que imaginei. Por várias razões. A primeira, e nada descartável, é que ela bastante desconfortável. A cadeira é muito grande, muito larga e sem as proteções laterais que minha manual possui. Assim, fico muito solto nela e com dificuldades de me equilibrar. Acabo sobrecarregando minhas pernas na tentativa de encontrar alguma posição mais agradável.
A segunda justificativa, e mais séria e de difícil resolução, são as consequências que ela cadeira causará em minha vida. Explico. Uma cadeira motorizada significa, a priori, mais liberdade e mais independência ao usuário, certo? Sim, em parte. Sempre acreditei nisso, mas estou revendo esse conceito. Por quê? Primeiro, vamos entender o porquê dessa independência. Imaginem que vocês precisam empurrar sua própria cadeira, com a força dos seus músculos, subir e descer rampas, enfrentar terrenos irregulares ou percorrer longas distâncias. Caso a pessoa não seja dotada de força, será bem complicado fazer tudo isso. Lembremo-nos de que nossa cidade é terrível para cadeirantes. A foto que postei nesse artigo foi uma ida minha, semana passada, a três quarteirões da minha casa, distância curta, mas impossível de ser percorrida pelas calçadas. A segunda foto é da rampa de entrada do prédio onde irei morar, em breve. Notem que ela feita de pedrinhas, que tornam a subida um desafio e tanto. Em uma cadeira motorizada, essas dificuldades seriam sanadas em dois tempos. Contudo, a cadeira motorizada é extremamente mais pesada do que a manual, pelo acréscimo das baterias, o que impede ser carregada para subir batentes de uma certa altura, por exemplo. Certamente, será um problema pra mim. Ademais, se já tenho limitações de carro para desmontar a manual, com a motorizada, a limitação dobra.
Esses são os senões da tal falada independência que uma cadeira motorizada oferece. Lógico, com ela, eu poderia sair de casa sozinho, sem a companhia de um familiar, amigo ou funcionário. Chamaria um táxi adaptado, entraria e iria para onde eu desejasse. Entanto, no meu caso em particular, não é tão simples porque eu precisaria transpor outra barreira, a emocional. A primeira vez em que saí sozinho, sem meus pais ou um funcionário, somente com amigos, foi quando estava na faculdade, ou seja, com 21 ou 22 anos. Isso mesmo. Demorei esse tempo para adquirir coragem e confiança em alguém que não convivia comigo desde meu nascimento. Assim, imaginar que ganharia o mundo pela simples chegada de uma cadeira motorizada é um pouco demais. É preciso tempo e maturidade. Ainda preciso resolver algumas coisinhas pessoais, alguns entraves de fundo emocional, para conseguir esse feito. Vou chegar lá, mas sem pressa. O problema é que me cobro essa pressa pelo valor pago pela cadeira. Ficar com ela parada, em meu quarto, dias a fio, não me parece correto. Porém, menos correto seria me violentar e forçar uma situação com consequências imprevisíveis. Certo? Esse a conquista que ainda não obtive. Pulemos de parágrafo e comecemos a falar de coisas boas e alegres.
Em janeiro do ano passado, comecei a acordar em algumas manhãs com uma fortíssima dor de cabeça. Na nuca, para ser mais exato. Como nunca tive essas dores antes, fiquei preocupado e procurei meu médico. Como eu tinha estado gripado, até uma semana antes, ele imaginou que poderia ser faringite ou alguma ‘ite’ semelhante. Receitou um remédio pra isso e mandou que eu esperasse. Os dias passaram e não melhorei. A dor era curiosa. Ela somente me atacava quando estava deitado. Bastava eu me levantar e ela ia embora. Em suma: eu acordava e ela ia dormir, só acordando novamente quando eu me deitava à noite. Liguei outra vez para o médico e ele levantou a possibilidade de ser um problema de coluna (tenho escoliose). Mudei a ‘ite’ para uma ‘ose’. Sugeriu, então, que eu procurasse um ortopedista e fizesse fisioterapia. Olha ela aí. Através de uma amiga, contatei a doutora Neuma Silveira, fisioterapeuta dela, e pedi que fizesse uma avaliação do meu caso. Ela veio aqui acompanhada de uma jovem, que pensei, no início, ser filha dela. Não era. As duas me examinaram, encheram-me de perguntas e traçaram um plano de exercícios para mim, visando fortalecimento muscular e cardiorrespiratória. A jovem, doutora Camila Napoleão, assumiu meu caso e passamos a nos encontrar quatro vezes por semana.
Para explicar como minha vida mudou a partir daí, costumo brincar usando a seguinte frase: minha vida pode ser dividida em dois períodos: A.C. e D.C. (Antes de Camila e Depois de Camila). Religiosos que me perdoem. A principal mudança se deu na questão cardiorrespiratória. Eu nunca tive problema cardíaco, é bom ressaltar, mas minha resistência a longos esforços ou períodos de atividade intensa vinha caindo, assustadoramente, nos últimos anos. Além do avanço da idade, teve também o avanço do peso. Uma tarde fora de casa, rodando pra lá e pra cá, era o suficiente para eu chegar exausto, esbaforido. Hoje, não. Se for necessário ficar o dia inteiro fora, fico, sem problema nenhum. O fortalecimento muscular também é uma realidade. Em minha casa, temos uma rampa que dá acesso aos quartos e um dos exercícios é subi-la várias vezes. É sério: várias vezes. Camilinha adora me ver suar e me ouvir dizer que estou cansado ou com os braços doendo. “Ótimo. São os músculos crescendo, se fortalecendo. De novo”. O desafio dela agora é me colocar dentro de uma piscina. Estará rompendo mais uma barreira, das grandes, mas vai conseguir. Dei a ela o benefício da dúvida, pelos ótimos resultados que tenho obtido. Só pedi paciência.
Finalmente, chegamos à terceira conquista. Há cerca de cinco anos, venho notando uma queda gradual, mas constante, da minha capacidade auditiva. A Osteogênese Imperfeita tem esse efeito colateral e seus portadores precisam conviver com ele. Sons muito baixos ou longe passavam desapercebidos. Muitas vezes, alguém falava comigo, nas minhas costas, e eu não escutava. Era necessário que ele gritasse. Sons da televisão ou do computador eram outro problema. Na primeira, precisava colocar o volume quase no máximo e, para o computador, acostumei-me a usar fones de ouvido. Celular também começou a ser difícil. Decidi, então, fazer uma audiometria e meu otorrino confirmou o que eu já suspeitava: estava com uma redução da minha audição. A questão passou a ser usar ou não a prótese. Tive enorme dificuldade em aceitar, pois já uso a cadeira de rodas, óculos, um aparelho de respiração para minha apneia do sono. Estava me sentindo o Robocop. Adiei, ao máximo, essa decisão até me render e comprar os tais aparelhos. Foi impressionante a mudança. Lembro-me de, certa vez, estar no computador e começar a escutar um estalido. Aquilo começou a me incomodar e procurei a origem dele. Descobri ser na CPU do computador e recordei que meu pai sempre mencionou esse estalido e eu nunca soube a que ele se referia. Eu, simplesmente, não ouvia. O volume da televisão, que era de 80, passou a 20. Os diálogos em família ganharam outra tonalidade. A sensação é que se descortinou um mundo novo na minha frente.
A moral dessa história é que, muitas vezes, as coisas acontecem conosco e nos questionamos: “por que não fiz isso antes”? Certamente, se eu tivesse começado minha fisioterapia, anos atrás, todos aqueles benefícios teriam vindo muito mais cedo. Contudo, não seria com a Camila. Se tivesse aceitado a prótese antes, não teria perdido tanto coisa. Mas, quem pode, realmente, garantir o que teria acontecido se tivéssemos feito algo antes e não somente quando fizemos? Acredito que fazemos as coisas ou tomamos as decisões na hora certa, quando nos sentimentos compelidos ou preparados para tal. E esse momento somos nós quem conhece. Podemos ter ajuda, e devemos, de pessoas que nos amam, profissionais especializados, mas, no final do dia, a decisão é nossa e de mais ninguém. Os louros são nossos e as dívidas também. A sabedoria popular nos ensina que “o apressado come cru” e é verdade. Deixemos as cobranças e as exigências um pouco de lado em prol da nossa saúde mental. Esse é meu recado. Acessibilidade e Cidadania andam juntas.
“A pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo,
em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (Lei Brasileira de Inclusão – Art.34).
4 Comentários
Victor sei mudanças difícil adaptações, realmente cadeira motorizada comprei pouco depois de você já fiz aventuras indo atravessar ruas sábados ou domingos trânsito mais tranquilo e semana geralmente só shopping vizinho você sabe mas ladeiras subo desço calçadas realmente terríveis! Mas independência Tb não achei só se tivesse motorista, carro adaptado e cadeira mesmo pouco mais alta minha manual para subir faço mais esforços já fico em pé .Fisioterapia e natação sempre fiz mas limites com idade para todos é grande e nós portadores osteogenesis imperfeita complica mais quando acontece acidente meu caso fratura úmero e prótese auditiva foi ótimo quando comecei usar e ia todos anos INES Instituto Nacional dos Surdos RJ , no Ceará representantes próteses auditivas não podem comprar melhores qualidades para teste pelo alto custo se depois não der certo não venderem poder aquisitivo baixo fica difícil então atualmente tenho poucas opções e Volume TV voltou 100%, não é seu caso espero. Fico feliz suas adaptações melhor qualidade de vida! Abraços Célia
É um processo, Célia. As coisas andam em velocidades diferentes, mas andam. Vou chegar ao ponto da independência, com certeza. Obrigado pelo apoio e força. Beijos
Victor, gostei muito do seu texto, mais uma vez! Você escreve bem! E de forma leve e ao mesmo tempo com conteúdo e contundente. Parabéns! Continue assim… O mais importante e necessário hoje é ler textos como os seus em que a pessoa com deficiência se desnuda e conta detalhes íntimos de sua vida de forma sincera e forte. Acredito que incentiva muitas outras pessoas a tomarem atitudes como as suas e as compartilhar também. Agora sobre o momento exato de realizarmos passos pequenos, médios ou grandes em nossas vidas, concordo com você: depende da cada um. É a difícil ou fácil escolha trará consequências, sejam boas ou não. O tempo pode ser nosso aliado ou nosso inimigo, mas só nós mesmos conseguimos realizar mudanças em nossas vidas com confiança e autonomia quando a escolha é 100% interna e consciente. Parabéns por suas conquistas e continue firme e forte sempre! Abraços, Leandra.
Obrigado por suas palavras, Leandra. Tem sido difícil mesmo mergulhar em certas questões pessoais, mas admito que tem sido muito gostoso também. Minha preocupação era me sentir mal com essa abertura, mas não tem acontecido. Sem Barreiras sempre esteve pronto para receber depoimentos pessoais, histórias de vida e nada mais coerente que o criador do blogue também fale de sua vida. Abraço forte e seu texto entrar no ar quarta-feira próxima.