Papai, eu quero me casar!
O exercício da cidadania para qualquer indivíduo inclui diversos direitos inerentes a sua pessoa, como estudar, trabalhar, se relacionar com outras pessoas, ter amigos, votar, constituir família, etc. Este exercício pleno de cidadania, entretanto, costuma ser negado para grande parte das pessoas com deficiência (PcD’s). Se a deficiência for intelectual, o problema é exponencialmente mais grave! Vamos a ele, então!
Importante relembrar que venho construindo para os leitores desta coluna uma jornada sobre a vida das pessoas com Síndrome de Down (SD), uma coletânea de observações de um pai e militante da causa, que tem investido tempo e energia na coleta e no processamento de informações sobre o tema. Já falei sobre diversos aspectos voltados à busca de uma melhor qualidade de vida, iniciando pela gestação e passando pelas diversas fases do crescimento, inclusão escolar e profissional, etc. Agora, inicio uma abordagem sobre o relacionamento afetivo dos indivíduos com Síndrome de Down.
Precisamos levar em consideração alguns aspectos. O primeiro, e talvez o mais importante, é a necessidade de afeto que a maioria dos seres terrestres temos. Sim, de forma semelhante aos animais, o ser humano precisa do afeto de sua família, carece do apoio dos amigos, costuma se tornar uma pessoa melhor quando encontra um parceiro afetivo. Não poderia ser diferente nos indivíduos que nasceram com a trissomia do 21, a condição genética que define a pessoa com SD.
Diversos estudos sobre o comportamento humano sustentam os prejuízos verificados em pessoas que não tiveram a oportunidade de se relacionar com outras pessoas de sua espécie, que, por algum motivo, foram mantidas isoladas, separadas do convívio com seres humanos. Agressividade e uma série de outros transtornos eram facilmente percebidas como consequência dessa exclusão. Infelizmente, essa era, e ainda é, a realidade de milhares de pessoas com SD no mundo. Até a década de 60 era comum que essa população fosse internada em clínicas ou depositada em algum cômodo trancado da casa. Ainda eram conhecidos como “mongoloides”, termo hoje banido pela comunidade científica e considerado como motivo de crime por preconceito.
Mas, percebam: como aqueles indivíduos que eram excluídos do convívio de seus pares poderiam se desenvolver como cidadãos se lhes era negado desde o nascimento o direito a ser reconhecido como uma pessoa plena de direitos?
Definitivamente, essa época das trevas causou danos irreparáveis para boa parte da população com Síndrome de Down e seus parentes, amigos e militantes da causa. Mas, essa imagem vem mudando e hoje a realidade é completamente diferente, pelo menos no mundo da literatura e das redes sociais. A feroz luta pela inclusão, travada com afinco nas últimas décadas, promoveu uma geração de excelentes exemplos de cidadãos que têm exercido, em sua plenitude, os direitos de cidadão.
O primeiro passo, portanto, e o maior desafio, é acreditar que isso é possível. Existe uma visão geral da sociedade, compartilhada inclusive pela prática de boa parte dos pais superprotetores, de que o indivíduo com Síndrome de Down tem limites insuperáveis e nunca poderá ter autonomia completa. Este parece ser um conceito razoável quando se olha para um passado de práticas exclusivas, referendadas pela classe médica e escolar; mas, este conceito é inaceitável quando se percebe o potencial que esses indivíduos vêm apresentando ao longos dos últimos anos. Quer dizer, o futuro não pode ser comprometido por crenças limitantes surgidas de experiências do passado! O potencial desses cidadãos vem surpreendendo cada vez mais os profissionais e é sob esse aspecto que precisa ser entendida a importância de relacionamento interpessoal saudável para os indivíduos com a SD.
Amigos. Colegas. Companheiros. Pensando no ambiente de uma escola regular, imagine para a criança com SD essa experiência: como fazer amigos num ambiente onde você é considerado como inferior, incapaz de estabelecer uma conversação interessante, por exemplo? Vamos fazer uma pequena comparação com outro tipo de deficiência. Pense na criança com excesso de timidez. Claro, uma deficiência no potencial de relacionamento interpessoal. Como sofre uma criança tímida, muitas vezes sofrendo bulling diário sem que os adultos percebam… E se usar um óculos fundo de garrafa, for cadeirante, estiver fora do padrão existente no imaginário dos cidadãos que matriculam seus filhos naquela escola? O preconceito é grave, excludente, traumatizante. Se existe para pessoas com deficiência, imaginem para o caso da deficiência intelectual.
Têm mais dificuldades para assimilar as regras do futebol, não consegue entender no mesmo timing dos amigos as piadas contadas nas rodas do recreio; não têm o padrão de beleza tão cobrado entre adolescentes, é complicado estabelecer relações de amizade com outras pessoas sem deficiência. Sim, essas amizades existem. Mas, a regra geral da sociedade é não incluir plenamente os indivíduos com SD nas relações de amizades dos cidadãos. Ainda hoje, existe um preconceito velado que precisa ser melhor estudado e combatido.
Sempre é bom lembrar que existe preconceito explícito também da sociedade. Muitas vezes em reuniões de pais, surgem questionamentos sobre a permanência de alunos com deficiência intelectual na sala de aula regular. “Será que esses alunos não vão atrapalhar o aprendizado do meu filho? O professor vai deixar de explicar para a turma para se dedicar somente a esses alunos especiais?”. Sim, isso é preconceito, tema complexo que precisa ser detalhado em outro momento. O que estamos abordando agora é a dificuldade para fazer amigos no ambiente escolar.
Se já é difícil ter amigos, imagine ter uma namorada ou namorado. Como estabelecer uma relação afetiva com alguém, para uma troca de aprendizados prazerosos? Fica mais fácil quando eles têm a oportunidade de conviver com pessoas semelhantes, que passam por processos parecidos com os seus. Esta realidade é muito comum nas instituições que atendem pessoas com deficiência, local onde podem aprender a se relacionar, inclusive o domínio dos complexos sistemas de relacionamentos e seus limites, uma tarefa que normalmente exige um tempo mais longo de assimilação do que seria exigido de uma pessoa sem uma deficiência intelectual.
Resumindo de forma rasa: as pessoas com Síndrome de Down têm potencial para estabelecer relações interpessoais de qualidade com qualquer outra pessoa, com ou sem deficiência; mas, o primeiro passo é que seus interlocutores acreditem que isso é possível.
Em minhas andanças e observações do comportamento de crianças, jovens e adultos com a SD, ao longo dos últimos vinte anos, pude perceber que as experiências de maior sucesso foram aquelas que acreditaram realmente nesse potencial, nos pais, professores, parentes e profissionais que exerceram uma prática inclusiva nesses relacionamentos. Daí que surgiram incontáveis exemplos de cidadãos que estão se realizando profissionalmente, fazendo cursos de nível superior, trabalhando e montando seus próprios negócios, casando e constituindo família. Isso mesmo, casando e constituindo família.
As fórmulas interessantes que tenho visto aliam a inclusão da criança no ensino regular, convivendo com outras pessoas sem deficiência, ao apoio especializado de uma instituição, no contraturno, onde ali recebe estímulos e capacitações que lhe ajudam a compensar as dificuldades decorrentes da deficiência intelectual. Nessas instituições, ocorre o encontro com seus semelhantes, onde lhes é permitido praticar o relacionamento interpessoal na construção de amizades, flertes, namoros e até casamentos. Apesar da resistência de seus pais.
Fica aqui a reflexão para a coluna da próxima quinzena: como um jovem desempregado, que enfrenta com dificuldade os bancos escolares, vai poder sustentar uma família constituída por outro jovem com problemas semelhantes? Vão morar com os pais, que ajudarão na criação dos netos? Isto pode ser considerado um caminho adequado?
Atenção para a pegadinha: eu não falei em jovens com SD ou qualquer outro tipo de deficiência. Eu apenas me referi à situação do cotidiano de milhares de famílias brasileiras, principalmente nas camadas mais desfavorecidas de nossa sociedade, que são obrigadas a dividir o mesmo lar com novas famílias que não têm outra opção de moradia, realidade bem conhecida de nosso povo. Pois bem, da mesma forma como os pais vêm acolhendo em sua casa as novas famílias constituídas por pessoas sem deficiência, muitos pais vêm acolhendo novas famílias constituídas por adultos com SD. Quando a família tem mais recursos ou os jovens têm uma autonomia melhor, conseguem mais independência: moram próximo a algum parente ou no mesmo prédio de um familiar. Mas, essa realidade ainda é minoria. Ela enfrenta uma resistência muito grande.
Essa resistência será o tema de minha próxima coluna. Quais são os medos enfrentados pelos pais quanto ao futuro de seus filhos com SD? Aguardo suas críticas, sugestões, comentários. Ajude a construção de um mundo PARA TODOS.
1 Comentário
Parabéns Grande João! Belo texto atual e engradecedor .