O Brasil precisa de uma reforma social
Comecei a escrever esse texto no início desse ano, mas empaquei e o deixei de lado. Na última semana, com os eventos de intolerância e racismo que presenciamos na grande mídia, achei que caberia uma nova olhada nele e seu ressurgimento. À época, o que me incentivou a escrever foram as reformas política, tributária e previdenciária que estavam no horizonte desse governo golpista e ilegítimo. Infelizmente, muitas delas foram aprovadas. Não me entendam mal, acredito que o Brasil precisa, sim, dessas reformas, mas não da forma como elas foram feitas. Reformar algo significa melhorar, corrigir suas imperfeições, seus erros e produzir algo novo e melhor. É o lógico. Contudo, as reformas do governo golpista fazem o contrário. Partem de uma realidade ruim e obsoleta e produzem algo extremamente pior e retrógrado. O país vai andar pra trás, vai retroceder, simplesmente, por uma razão: a motivação das reformas não foi para melhorar nada, mas para beneficiar a parcela da sociedade que sempre foi beneficiada em nossa história. Daí porque o retrocesso, o andar para trás.
Além das mencionadas acima, o Brasil precisa de outras reformas – dos meios de comunicação, por exemplo, para acabar com a concentração da informação nas mãos de apenas seis famílias. Diversos países já fizeram sua reforma da mídia e não me refiro a países comunistas ou ditaduras, argumento comum entre os que são contra. Inglaterra, França e Estados Unidos são apenas alguns desses exemplos e eles não têm nada de comunistas. O raciocínio é simples e, mais uma vez, lógico. A informação é um ramo de negócios que gera quantias absurdas de dinheiro e, portanto, deve ser encarada como tal. Temos agências reguladoras de alimentos, remédios, transporte aéreo, terrestre, petróleo, todos ramos de negócios e todos geradores de fortunas incalculáveis. Por que não regular a mídia? A regulação não significa censura, outro argumento erroneamente utilizado. Regulação significa pluralização, democratização do acesso a um canal de televisão ou sinal de rádio. Regulação significa estabelecer regras claras para o uso desse sinal, significa dar a oportunidade para setores sociais, trabalhistas, de organizações de classe terem seus canais de rádio e televisão e, assim, oferecer ao público uma informação mais diversificada. No final do dia, significa contribuir para o enriquecimento cultural da sociedade.
A regulação dos meios de comunicação merece um texto exclusivo para ela, dadas a sua complexidade e importância. Ficará para outra oportunidade. Por ora, nos concentremos no título desse texto: reforma social. Falar em reforma social em um país que não tem educação pública de qualidade, renda, emprego, saúde para todos e ainda uma mídia concentrada nas mãos de poucos e desregulamentada não é fácil. Chega mesmo a ser utópico. Porém, vamos em frente. Comecemos com uma pergunta: o que é reforma social? Podemos responder apontando dois caminhos: reforma no sentido financeiro, ou seja, ascensão social, saída da população da linha de pobreza ou reforma no sentido cidadão. A segunda é a que me interessa aqui. O lema de Sem Barreiras sempre foi Acessibilidade e cidadania andam juntas. Pois bem, a palavra-chave é cidadania. E surge uma segunda pergunta: o que é cidadania? A palavra vem do latim civitas, que significa cidade. Cidadania, portanto, é o conjunto de direitos e deveres de um indivíduo que vive em sociedade. É sua capacidade de se entender parte de um todo, de uma organização social, influir no seu funcionamento e exigir o cumprimento de leis e estatutos locais, nacionais e universais. Muitos interpretam o conceito de cidadania como o direito a votar e escolher seus governantes. Sim, é importante e fundamental, mas não é só isso.
Pessoas com deficiência exigirem a construção de rampas, elevadores, a instalação de piso táteis, painéis em braile ou presença de tradutores de LIBRAS nos prédios públicos e privados, reforma das calçadas, das ruas, existência de meios de transporte público adaptados é a forma pura e cristalina de lutar por sua cidadania. Mulheres exigirem receber os mesmos salários dos homens e serem vistas como iguais, terem sua condição feminina respeitada e não serem mais vistas apenas como objeto de desejo dos machos são outra forma de cidadania. O mesmo vale para os negros vencerem a herança escravocrata brasileira, que jamais permitiu que eles saíssem das senzalas físicas ou emocionais ou ainda os homossexuais serem livres para se unir a quem eles quiserem – sendo do mesmo sexo ou não – e constituir famílias e terem seus direitos civis respeitados. Como se vê, a dimensão do termo cidadania é enorme, bem diferente do conceito limitador do ato de votar. Se o Brasil fosse um país, realmente, cidadão, não teria havido o golpe parlamentar de 2016 e não teríamos um presidente tão envolvido em acusações gravíssimas de corrupção.
Todos nós vimos, semana passada, o episódio do jornalista William Waack fazendo comentários racistas durante o intervalo do Jornal da Globo. “É coisa de preto”, disse ele, aos risos, para seu entrevistado sobre um barulho na rua. O jornalista virou alvo, imediatamente, de uma enxurrada de críticas nas redes sociais, pedidos de prisão imediata e demissão sumária por parte da Rede Globo. Ele não foi demitido, ao menos por enquanto, mas foi afastado da bancada do Jornal da Globo e do programa de entrevistas que ele conduzia na Globonews. Além disso, teve sua participação em, ao menos, duas palestras, cancelada. William Waack caiu no ostracismo e, dificilmente(?), haverá clima para seu retorno. Fiz questão de colocar o ponto de interrogação porque minha afirmação é perigosa, em nosso país. Vamos nos lembrar que o homem forte do jornalismo da Globo, Ali Kamel, é autor do livro Não Somos Racistas. A obra (pausa para rir) defende a ideia de que não há racismo no Brasil (você pode ler uma análise sobre o livro e do autor aqui, do saudoso jornalista Paulo Nogueira). Curiosamente, pouco depois do lançamento do livro, a jornalista Maju Coutinho, a ex-garota do tempo no Jornal Nacional, foi alvo de ataques racistas na página do facebook do JN: “preta imunda” e “macaca” foram alguns dos comentários. E aí, Kamel, somos ou não somos racistas?
Ainda semana passada, passeando pela rede, vi uma matéria do UOL que falava sobre a abertura de um procedimento investigatório do Ministério Público da Bahia contra o grupo É o Tchan, por conta de placas no banheiro do local de ensaio, Clube Espanhol, em Salvador, com os dizeres “ordinárias” e “inocente”, fazendo referência a feminino e masculino. Os termos são bordões de Compadre Washington, o vocalista do grupo. Vimos também as inúmeras acusações de assédio sexual no cinema americano, atingindo pessoas de peso da indústria, como o ator Kevin Spacey. Contudo, o mais impressionante são os comentários nessas matérias. A grande maioria afirma serem acusações infundadas e oportunistas porque “querem aparecer em cima de famosos” ou ainda perguntam por que esperaram tanto tempo para fazer as acusações. A vítima se torna culpada pelo fato de acusarem pessoas famosas. A falta de empatia e solidariedade de muitos brasileiros é a demonstração do quanto precisamos de uma reforma social. Precisamos, por exemplo, admitir nossas falhas e nossos preconceitos. Nós somos racistas, homofóbicos, machistas. E sabem quando somos? Quando fazemos uma piadinha de bicha ou de preto ou de puta ou de pobre ou de nordestino. Somos racistas quando chamamos o goleiro adversário, negro, de macaco ou quando jogamos banana para ele. Somos preconceituosos no nosso imaginário, no nosso subconsciente.
Muitas vezes, fazemos ou dizemos coisas ofensivas sem perceber, pelo simples fato de ser natural para nós. A cor preta é comumente associada a problema ou dificuldade: “foi um período negro da minha vida” ao invés de período difícil. “A coisa tá preta” no sentido de estar complicada. “É coisa de preto”, coisa de vagabundo. Eu mesmo caí nessa armadilha no meu último texto (leia aqui) e fui chamado à atenção pela colega Lana Nóbrega. O Brasil é um país com um déficit cultural e educacional gigantes. Volto a repetir: reforma social, sozinha, não resolve nada. Precisamos encarar esse desafio e olhar para dentro de nós mesmos, nossas falhas, nossas imperfeições. Precisamos combater a hipocrisia de que não somos racistas, de que somos solidários. Não somos solidários. Somos um país de pessoas pequenas e ignorantes, que se calam diante de um governo repleto de ladrões, diante da perda de nossos parcos direitos sociais, e fazemos zoada na porta de museus e exposições, acusando os artistas de pedófilos e estupradores. Somos um país que perdoa um presidente intelectual que comprou sua reeleição e persegue outro por ele ser de origem humilde. Somos um país que acha normal um ator pornô falar abertamente que estuprou alguém, dando risadas estridentes em um programa de televisão, e nos escandalizamos e achamos um absurdo total quando uma cantora ou uma jornalista anunciam que “viraram” lésbicas. Tiramos do bolso conceitos bíblicos de família, casamento, pecado. É dessa reforma social de que precisamos, uma reforma que insira, no imaginário popular, a palavra CIDADANIA.
* A foto que ilustra esse texto, na capa do blog, é uma triste realidade do modo como brancos e negros são tratados no Brasil. Percebam que estão vestidos com a mesma roupa e correm no mesmo local, mas as frases embaixo deles os retratam de modo diverso: branco correndo é atleta; negro correndo é ladrão.
1 Comentário
Victor, ótimo texto!!!! Forte e contundente, mas no próximo texto acredito que seja bem interessante você trazer à tona algumas sugestões de como todas as cidadãs e os cidadãos podem começar a MUDAR seus pensamentos e ações! O que acha da minha sugestão? Abraços e continue escrevendo!