O comportamento esperado de um adulto
Até onde vai a liberdade do ser humano? Existe o livre arbítrio, nós podemos fazer tudo aquilo que desejarmos, sabendo que existem consequências para cada ato. O receio pelos resultados de nossos atos costuma impor determinados padrões de comportamentos para as pessoas.
Esses padrões são passados de pai para filho, geração em geração, sofrendo as influências e transformações da interação social. Os padrões dos filhos são diferentes dos padrões de seus pais, foram modificados pelas próprias vivências desses filhos. E os netos também adotarão seus próprios padrões, fazendo suas próprias escolhas na busca de sua individualização.
Para os indivíduos com deficiência intelectual, esse livre arbítrio sofre uma série de restrições, normalmente adotadas na intenção de proteger a própria integridade da pessoa com deficiência. Coisas simples, como usar um fogão ou ficar em casa sozinho, não são permitidas para muitos jovens e adultos com a SD.
Nenhum pai sensato deixa o filho atravessar uma rua sem o apoio de uma pessoa responsável; enquanto não tiver certeza de que o filho já tem o discernimento suficiente para avaliar com segurança qual o momento correto para fazer a travessia, o pai segura forte a mão da criança.
Com o tempo, e passadas repetidas travessias de rua com orientação, a criança dá provas de que já sabe tomar aquela decisão e ganha sua liberdade para exercer o seu arbítrio nesse pequeno desafio. Virão outros desafios pela frente, e o papel dos pais costuma ser muito parecido: orienta, verifica se precisa de alguma ajuda e finalmente dá a liberdade para que o jovem faça suas próprias escolhas. Até que ele tenha autonomia para fazer essas escolhas sem precisar de tutela de terceiros.
Isso acontece naturalmente com pais de jovens sem deficiência. No caso de pessoas com SD, entretanto, tenho encontrado diversos casos de jovens que usufruem de uma liberdade muito restrita, o que é facilmente compreensível tendo em vista o risco que poderiam correr por não compreenderem perfeitamente os riscos de um determinado ato. O problema é encontrar o ajuste, o equilíbrio entre tolher a liberdade e promover a autonomia. Esse é o nó.
Como encontrar esse equilíbrio? Para quem tem maior convivência com pessoas com a síndrome, é fácil perceber que existe um tempo próprio para cada individuo; esse tempo costuma ser mais lento para as pessoas com SD. Atravessar uma rua, somente para citar um exemplo, requer um tempo de aprendizado superior ao da maioria das pessoas. Mas sim, grande parte dos indivíduos pode ultrapassar esse desafio. A postura dos pais, desde a mais tenra idade, faz muita diferença nesse aprendizado.
Podemos começar com um exemplo mais simples, como servir seu prato de comida na hora do almoço. Se todos os membros da família têm o hábito de escolher seu alimento e servir seu próprio prato, este hábito deve ser esperado também para a criança/jovem com a síndrome. Para acelerar o tempo que essa atividade leva, boa parte dos pais puxa para si esta simples tarefa; assim, a pessoa vai se acostumando a ser permanentemente servida, a não fazer suas escolhas. Alguém faz essa escolha por ela, e este hábito vai se estendendo ao longo da vida.
Parece uma coisa banal, mas faz toda a diferença no crescimento, desenvolvimento e na busca da autonomia da pessoa com SD. Importante destacar que todas as pessoas, com ou sem SD, estão sujeitas a apresentar alguma outra limitação, como o transtorno do espectro autista (TEA), o que pode comprometer essa capacidade de tomar decisões a que me refiro ao falar de um jovem com SD. Pode ser que algum pai ou mãe, ao ler minha abordagem, entenda que seu filho não pode chegar a este estágio por apresentar algum outro aspecto limitante.
Bem, cada caso obviamente é um caso. O alerta que estou tentando levantar é referente à superproteção que alguns pais mostram no relacionamento com seus filhos adultos. Não tomo como parâmetro minha filha, que realmente surpreende com sua desenvoltura; numa comparação com outros jovens com SD de sua idade, percebe-se que ela é quase um ponto fora da curva, no quesito de autonomia. Mas ainda teria potencial para um melhor rendimento escolar, na minha opinião. Cada pessoa tem suas características próprias.
Esses limites imaginados pelos pais e responsáveis, pela experiência que tenho com a convivência com dezenas de jovens, precisam ser expandidos; para o benefício desses futuros adultos, para aumentar sua independência. Quanto mais desafios forem lançados para esses jovens, como atravessar a rua, ir à padaria sozinho, controlar sua higiene pessoal e medicação, maiores as possibilidades de autonomia na vida adulta.
Essa construção é lenta, gradual, progressiva. E muito trabalhosa, pois envolve sempre a possibilidade de erros na avaliação… Então o comodismo dos pais costuma fazer com que eles assumam as tarefas que deveriam ser de seus filhos. Basicamente este é um dos pontos que mais comprometem essa autonomia.
Ao longo das últimas colunas citei diversos exemplos de adultos com SD que trabalham, estudam, montam seus próprios negócios, que conseguiram vencer as barreiras do preconceito e das limitações impostas pelo preconceito da sociedade. Este quadro depende muito do engajamento dos pais e responsáveis, e depende muito do investimento que for feito ao longo da vida.
Na próxima quinzena seguirei abordando alguns aspectos que podem nortear alguns pais na construção mental do comportamento esperado de seus filhos jovens e adultos com SD. Dúvidas, sugestões, críticas, algum exemplo? Escrevam pra gente!
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