Sobre o extraordinário
O nascimento de Alice, há 11 anos, foi cercado de muitos familiares. “Deviam ter umas 20 pessoas ou mais (no hospital)!”, lembra a mãe da menina, Alessandra Costa, 50 anos. Alice Peres Mota Ferreira Costa foi duas vezes surpresa, nove anos depois da família já formada por dois filhos. Após a gravidez inesperada, o parto colocou nos braços da mãe uma filha com Síndrome de Down. Nenhum exame lhe tinha avisado, diz Alessandra: “Ninguém esperava. Todos souberam naquele momento”.
E a vida não vem com manual, ela mesma se fabrica. Alessandra não quis ler a pesquisa sobre Síndrome de Down que o marido, advogado, fez na internet no dia seguinte ao nascimento de Alice. Escolheu “estar muito bem, para ela estar bem”, reduziu o horário de trabalho, depois, vendeu a loja. Buscou os cuidados e a tranquilidade de uma prima fonoaudióloga e o conhecimento e a amizade de uma terapeuta ocupacional. Os irmãos de Alice ofereceram atenção e carinho. “Em casa, foi tudo se encaixando… Todos foram se envolvendo”, abarca a mãe.
Até há pouco tempo, os horários e o viver de Alice foram se tornando os horários e o viver para Alessandra. “Todo mundo olhava e dizia: ela não vai falar, ela não vai andar, ela não vai comer. Eu dizia: ela vai fazer tudo!”, Alessandra encarava os medos e os preconceitos. E, quando Alice não podia mais caber no colo da mãe, quis o mundo. “Ela mesmo buscou o espaço dela”, observa Alessandra.
Com um ano e meio de idade, “como os outros irmãos”, equilibra Alessandra, Alice era inserida na escola. A mãe avalia que a inclusão, quando os olhares das crianças têm direções semelhantes, não foi difícil e Alice “caminhou junto com a turma” até o primeiro ano do Ensino Fundamental. Em casa, uma professora particular favoreceu a alfabetização e estimula a caminhada adiante.
Mas a primeira vez em que Alice foi para a aula de dança e para a aula de teatro, uma pergunta atravessou o caminho da mãe: “Como aquela escola vai receber? Se ela vai para um lugar novo, apesar dela ser ‘desenrolada’, a gente tem esse receio. Então, cada idade é uma dificuldade”.
Muitas respostas são compartilhadas na Associação Fortaleza Down. Há cerca de cinco anos, Alessandra se envolveu na criação da instituição com outros pais que se encontravam nas terapias dos filhos. A Associação passou a existir “para dar a esperança que muita gente tira”, ela sublinha, e reúne, aproximadamente, 250 famílias.
Mais do que uma pergunta, Alice é uma afirmação. Faz teatro-musical, piano e canto e vai iniciar o sapateado e recomeçar o jazz. “Os olhos brilham” quando está no palco, espelha a mãe, que se desdobra para incluir a filha no mundo. “Tudo o que ela quer fazer, ela busca. Na apresentação do final do ano, do teatro, ela queria uma fala (participação no texto da peça). Ela chegou para o professor e disse: eu quero uma fala. E teve”, admira Alessandra.
Por trás da Síndrome de Down, mora “uma menina de coração muito bom, muito amável, que tem um sonho e busca esse sonho todo dia: ser atriz e famosa”, sabe a mãe que se impressiona com a força de vontade da filha. “Não dou nada pra ela de mão beijada, mas dou todas as oportunidades pra ela conseguir tudo o que quer”. O extraordinário está, justamente, no que se faz com as possibilidades que se tem.
Do seu jeito, Alice, como o menino Auggie do filme, vence o mundo. E, semelhante à cena em que o garoto é aplaudido na escola, Alice é sempre aplaudida por quem a vê ser tudo o que ela pode ser. “Me disseram que ela não ia falar e hoje ela canta. Me disseram que ela não ia andar e, com três anos, ela estava dançando balé no Theatro José de Alencar”, restaura Alessandra.
A paciência abriu caminhos até as superações. Para quem pergunta como as duas conseguem, a mãe tem uma resposta única: “Você tem que acreditar… O segredo do amor é o amor”.
* Texto da jornalista Ana Mary C. Cavalcante, publicado no Jornal O Povo
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