Foto horizontal de uma jovem sorrindo em uma cadeira de rodas, de calça jeans, blusa branca listrada, óculos. Do lado esquerdo, um grande jardim.

Janela da Patty trabalha a autoestima e desmistifica a deficiência

25/05/2019 Deficiência Motora, Depoimentos, Histórias de vida, Notícias 0

Sem Barreiras conversou com a gestora de Recursos Humanos e pós–graduada em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, Patrícia Lorete, de Niterói/RJ, criadora da página Janela da Patty, aqui e aqui. Patrícia descobriu, aos seis anos, ter Atrofia Muscular Espinhal (AME) Tipo II. “Quando completei seis meses de idade, minha avó, percebeu que eu era muito hipotônica em relação às outras crianças (…) minha mãe começou a busca pelo diagnóstico, que foi fechado aos seis anos de idade”, conta. A partir de então, teve início sua busca por autoestima, respeito próprio e aceitação da sociedade e da escola. Segundo ela, no dia da matrícula, a diretora afirmou, “sem o menor constrangimento e sensibilidade”, na frente dela: “Sua filha não tem condição de aprender. E não temos estrutura para recebê-la”. A fala da educadora doeu na alma da criança de nove anos, mas também lhe deu forças para ficar naquela escola e ser a melhor aluna da sala. Patrícia conta ainda sentir que incomoda e isso a machuca muito, mas não mais como antes. “Geralmente, estou conversando com alguém e, de repente, o pensamento de que estou incomodando surge (…) parece que a pessoa está conversando comigo só por obrigação ou está enjoada da minha conversa”. Anteriormente, ela diz que parava de falar ou teclar, mas não age mais dessa forma. “Agora, começo a me dizer que é coisa da minha cabeça, que sou muito agradável, simpática, inteligente, tenho conteúdo”, afirma. A descoberta da AME fez a niteroiense valorizar as pequenas coisas a sua volta, como, por exemplo, quando consegue colocar a mão em cima da mesa. Em termos de Brasil, ela diz não conhecer nenhum grande projeto governamental para inclusão das pessoas com deficiência. O que existe é “misturação”. Ela diz que os professores não são treinados adequadamente para receber alunos com deficiência nas escolas e isso prejudica a inclusão das crianças. Além disso, reclama que ginecologistas não conhecem de fato as deficiências e, muitas vezes, dizem que as mulheres não podem engravidar quando nem sempre isso é verdade. No final da entrevista, Patrícia afirma que “ter AME não é fácil”, especialmente, quando as pessoas que cuidam dela começam a envelhecer e se torna necessário contratar cuidadores sem ter dinheiro para tal. “Perceber que sua pouca força está indo embora pesa e pesa muito”. Contudo, ela diz que não saberia dizer como seria sua vida se, um dia, descobrisse não ter Atrofia, pois sempre conviveu com ela e “meu jeito de ser foi moldado também por essa patologia”. Leia, a seguir, a entrevista feito por e-mail com a criadora da Janela da Patty.

 

Foto vertical de uma jovem sorrindo em uma cadeira de rodas, no Campo de São Bento/Niterói, em 2018. Ao fundo, várias pessoas passeando, visitando barraquinhas e conversando. No alto, um balão com a imagem do Homem Aranha.

Patrícia Lorete fala das dificuldades que enfrentou com preconceito, queda de autoestima e sua história de superação.

Gostaria que você falasse sobre sua deficiência. Quando descobriu? De que forma? Qual foi sua reação inicial? Como você lidou com ela?
Patrícia Lorete, 38 anos, Niterói/RJ. Quando completei seis meses de idade, minha avó, percebeu que eu era muito hipotônica (molinha) em relação às outras crianças. Não sustentava o pescoço e apresentava uns tremores nas mãos. Então, minha mãe começou a busca pelo diagnóstico, que foi fechado através da biópsia, aos seis anos de idade. Atrofia Muscular Espinhal (AME – leia mais aqui e aqui), tipo II, era o que eu tinha. Doença rara, fatal e sem tratamento!

Os médicos falaram para os meus pais não se desgastarem me levando para fisioterapia, pois não adiantaria nada, que eu havia passado dos dois anos de vida por sorte e que chegaria, no máximo, até 10, 12 anos. Felizmente, minha mãe não seguiu a orientação médica e, apesar de arrasada por dentro, decidiu investir em mim mesma, com um prognóstico tão ruim.

Só descobri a gravidade do que tinha quase entrando na adolescência. Em uma consulta, o médico disse que a AME era degenerativa. Não entendi o que significava, mas queria muito entender. Então, durante todo o trajeto para casa vim repetindo a palavra para não esquecer – “degenerativa, degenerativa, degenerativa…” Ao chegar, imediatamente, fui consultar o dicionário. E foi a partir deste momento que fiquei sabendo que nunca andaria e que minha tendência era só piorar. Levei um pequeno choque, mas logo me recuperei e passei a ser mais consciente de mim mesma e da minha vida!

Você escreveu que sua entrada na escola foi muito difícil. Fala um pouquinho das suas lembranças e dos seus sentimentos na época.
Minhas aulas aconteciam em casa, geralmente com pessoas que davam aula de reforço. Depois, minha mãe resolveu me colocar em uma escolinha, que só tinha o Jardim e a alfabetização. Quando terminei a alfa, minha família recebeu um feedback bem animador a meu respeito. Disseram que eu conseguia acompanhar normalmente meus coleguinhas e, às vezes, tinha um desempenho melhor que o deles. Diante disso, foi decidido que eu iria para uma [escola] bem maior, uma municipal. Ela ficava tão longe, 4km ida e volta, distância essa que seria percorrida a pé por minha mãe.

No dia da matrícula, fui junto. A diretora, sem o menor constrangimento e sensibilidade, disse na minha frente: “Sua filha não tem condição de aprender. E não temos estrutura para recebê-la. A sala do térreo será nossa sala de vídeo. Por isso, não podemos usá-la para ela estudar”. Doeu na alma!

Ao chegarmos em casa, minha mãe chorou muito e disse que procuraria outra escola. Mas, eu disse que queria estudar lá! E prometi para mim mesma que seria uma das melhores alunas da escola! Era um peso muito grande para uma criança! Percebo isso agora.

A psicóloga que cuidava de mim foi à escola e me “aceitaram”. No entanto, tive que fazer a alfabetização toda novamente. Já comecei me sentindo muito mal, não só pelo preconceito sofrido, mas por ser a única pessoa com deficiência daquele lugar e a mais velha da turma, 9 anos na alfabetização.

Fiz todo o ensino fundamental na mesma sala, embaixo. Minha turma ficou sem professora na 1ª e 3ª séries, pois as que nos dariam aula alegavam ser a sala muito barulhenta, durante os 30 minutos do recreio das outras turmas. Então, a escola tinha que pedir novas docentes. Lembro-me direitinho de uma menina falando que não queria estudar comigo, pois, por minha causa, ela estava sem aula. Fiquei tão triste naquele dia! A escola, as professoras e nem os colegas me queriam ali. De certa forma, eu incomodava! E um sentimento forte de rejeição tomou conta de mim.

Você fala no sentimento de estar incomodando? Ele ainda existe? A quem, exatamente, você acredita que incomoda e por quê?
Existe, mas já aprendi a controlar um pouco isso. Geralmente estou conversando com alguém e, de repente, o pensamento de que estou incomodando surge. Sei lá, parece que a pessoa está conversando comigo só por obrigação ou está enjoada da minha conversa. Antigamente, todas as vezes que isso acontecia eu parava de falar ou mesmo teclar. Agora, quando essa sensação vem, na maioria das vezes, consigo estabelecer um diálogo interno e começo a me dizer que é coisa da minha cabeça, que sou muito agradável, simpática, inteligente, tenho conteúdo, etc… Não é metidez ou soberba, juro que não (kkkkk)! É que essa foi a forma que encontrei de duelar com essa neura e não deixar que ela me domine.

O que você entende por preconceito? O Brasil melhorou nos últimos anos ou continua a mesma coisa?
PREconceito… Como o nome já sugere, é uma opinião formada antecipadamente sobre algo ou alguém. Sendo assim, já se percebe seu perigo! O Preconceito julga baseado em estereótipos, rótulos e estigma, retirando da pessoa a chance de mostrar como verdadeiramente ela é. Ele é injusto, machuca, pesa e pode marcar seu alvo para sempre, trazendo grandes problemas emocionais e sociais.

O Brasil melhorou em relação ao preconceito sim, mas ainda estamos longe do ideal de aceitação referente à diversidade, diferença e particularidade humana.

Foto vertical de duas mulheres em frente a um globo formado por muitas luzes. A mulher da esquerda está em uma cadeira de rodas e, à direita, uma criança de 12 anos está de pé, encostada na cadeira.

Patrícia Lorete com a sobrinha Rebeca, 12 anos, no Campo de São Bento/Niterói, cujo nascimento amenizou seu desejo de ter filhos.

O preconceito dos outros me fez desenvolver um auto-preconceito sobre mim mesmo, ou seja, sempre imaginei uma forma de como as pessoas me viam até perceber que aquela era a forma com que EU me via. Você passou por isso?
Passei sim, principalmente, na adolescência! Eu achava que sempre me veriam como a mais feia e desinteressante das primas, das amigas. E passei a me ver e comportar exatamente assim. Pé tortinho, cicatriz na perna, escoliose, corpo assimétrico… era tudo tão estranho, tão diferente das outras meninas. A comparação era inevitável! Eu nem me arrumava, comprava qualquer roupa em qualquer esquina. Afinal, seria a mais feia mesmo, independentemente, do que usasse. Então, para que gastar dinheiro à toa, né?

Mas, com a maturidade, as coisas foram mudando um pouco e comecei a me enxergar com mais carinho e aceitação!

A deficiência me causou um problema grave de autoestima. Você também sofre isso?
Já sofri bastante com isso. Hoje, não ligo muito quando olham curiosamente para mim ou para a cadeira. Na verdade, me sinto até imponente chegando aos lugares com minha cadeira motorizada rs… E, bem diferente de antes, passei a amar um espelho! Adoro me olhar! Apesar de toda assimetria do meu corpo me acho uma mulher provocativa, sexy (Desculpe! kkk)! Como cantava o grupo Fat Family: ”Com seu jeitinho sexy, sexy, sexy…”

Você já se formou em Gestão de Recursos Humanos?
Sou formada em Gestão de Recursos Humanos e pós–graduada em Saúde Mental e Atenção Psicossocial.

Quanto ao tema relacionamentos: você é casada? Tem filhos? Se não, pretende algum dia?
Não sou casada e nem tenho filhos! Nunca tive aquele sonho de casar que a maioria das garotas tem! Mas, se acontecesse, ficaria feliz! Já filhos… eu já quis muito ter uma menina. Ficava sonhando acordada em como seria maravilhoso ler para ela e fazer uma estante para colocar seus primeiros livrinhos rs… No entanto, quando minha sobrinha nasceu, esse desejo amenizou consideravelmente. Acabei me sentindo um pouco mãe! Mas, agora que a minha deficiência avançou, não penso em ter filhos, de jeito nenhum. Bom, se meu marido quisesse muito em repensaria rs…

A descoberta da AME modificou a forma como você vê o mundo? Como?
Depois que descobri o que é a AME, aprendi a me contentar com coisas mais simples, com pequenas felicidades! Uma boa conversa, uma boa leitura, um recadinho em que detecto amor ou mesmo quando consigo colocar sozinha a mão em cima da mesa da sala. Modificou o jeito também que vejo as pessoas. Acho que elas reclamam demais, mesmo cheias de possibilidades de viver!

Mais alguém na sua família tem Atrofia ou alguma outra deficiência?
Tive uma irmã, antes de mim, que morreu com sete dias de vida. Ela não conseguia mamar ou mesmo engolir o leite e, imediatamente, precisou fazer uma gastro. Tudo indica que era AME, pelos sintomas e pelo médico ter dito para os meus não terem mais filhos. Mas, também só disse isso, não explicou nada. Contundo, como não obtivemos um diagnóstico, não podemos afirmar que era Atrofia.

Tenho uma tia cega! Apareceu um tumor no cérebro e, aos 50 anos de idade, ao fazer a cirurgia para a retirada, teve como sequela a cegueira.

Como foi sua infância e adolescência?
Minha infância foi sem perguntas do tipo: Por que não ando? Por que sou diferente? Adaptava as brincadeiras e tudo fluía bem. Mas, tinha a fisioterapia, as cirurgias e o período de recuperação. Isso roubou um pouco meu tempo de criança. Mas, o mais difícil foi aceitar a cadeira de rodas. Precisei de terapia. Eu só usava carrinho de bebê. A cadeira só entrou na minha vida quando fui para a escola, 8/9 anos.

Minha adolescência foi confusa, eu não aceitava meu corpo diferente nem entendia o porquê de não participar das festas, sair com amigos e tantos outros “porquês”. Fase muito difícil! E não era só a deficiência que impedia, era também a proteção excessiva dos meus pais. Até na escola, minha mãe ficava comigo. Sempre que eu precisava de auxílio, ela estava presente. Lógico que agia nas melhores das intenções e, de certo modo, livrou-me de zoações, intimidações, etc. Mas, ao mesmo tempo, me privou de namorar, de matar aula (risos…), de me virar sozinha. Essa presença constante me deixou um pouco insegura em relação a estar na companhia dos outros e pedir ajuda. Então, minha vida social se resumiu à companhia dos meus pais.

Quando surgiu a ideia de criar a Janela da Paty? Por que você o fez? De que forma você acredita que ela ajuda você e pode ajudar os outros?
Sempre usei meu Facebook pessoal para falar sobre deficiência. Mas, as pessoas me cobravam a criação de uma página, blog, o que fosse. Acabei cedendo e criando a Janela da Patty.
Acho que a Janela da Patty me ajuda a partir do momento que acabo me superando para poder motivar os meus seguidores. Quando fui para pós-graduação, na qual ficava um sábado inteiro, pensei em desistir muitas vezes. Afinal, uma tetra equiparada (tem pouquinhos movimentos, mas mantém a sensibilidade inteira no corpo, e não tem incontinência) ficar 10 horas sem ajuda não é mole! No entanto, eu pensava no que falaria para as pessoas, com ou sem deficiência, que me ouviam falar sobre coragem para enfrentar a vida apesar das limitações trazidas pela deficiência.

E como a página tem essa pegada de trabalhar a autoestima, a desmistificar o universo da deficiência, encorajar a assumir uma posição de direito na sociedade, recebo muitas mensagens de agradecimento. Pois, a partir do momento que conheceram a página, conseguiram assumir o próprio corpo, a ver a vida de outra maneira, a namorar, a exigir seus direitos, etc. Os relatos são tão carinhosos que às vezes até choro rs… E a Janela não se restringe a quem tem alguma limitação. Tenho muitos seguidores professores e mães de pessoas com deficiência. A página consegue dar um suporte a eles também!

Qual sua opinião sobre o Brasil em termos de inclusão?
Não conheço nenhum grande projeto governamental ou campanha nacional sobre a inclusão. E acho que deveria ter! Vejo projetos de “misturação” e inclusão não é isso! Por exemplo, não preparam os professores para receber as crianças com deficiência e assim a inclusão escolar não acontece de fato, por mais esforço e dedicação que esses docentes tenham. E outros profissionais também pouco estão preparados! Temos ginecologistas que desencorajam mulheres com deficiência a terem filhos porque não entendem nada sobre nós e nossa saúde. Estabelecimentos que não promovem a acessibilidade porque não nos veem como consumidores. Ausência de rampas nas calçadas porque acham que não saímos de casa. Tudo isso faz parte da inclusão, de uma sociedade inclusiva! E o Brasil fica devendo muito nessa questão. Infelizmente!!!

Para encerrar, uma pergunta que minha terapeuta me fez: você considera sua deficiência sua INIMIGA, RIVAL ou COMPANHEIRA? Se nenhum dos três, qual termo você utilizaria?
Ter AME não é fácil! Principalmente, quando as pessoas que cuidam de você começam a envelhecer e te falta dinheiro para pagar um cuidador. Perceber que sua pouca força está indo embora pesa e pesa muito! Então, nessa hora, eu a percebo como inimiga! Até a chamo de “desAME” rs…

No entanto, esses dias, ao fazer o exame de DNA, pensei: “E se der inconclusivo para AME, o que faço? Desde sempre, convivo com ela e, de certa forma, meu jeito de ser foi moldado também por essa patologia. Eu não saberia o que fazer se alguém chegasse hoje para mim e dissesse que não tenho Atrofia Muscular Espinhal. Sendo assim, no MEU caso, eu diria que a AME é uma companheira bem filha da **** rsrs…

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