Ninguém assovia para a mulher na cadeira de rodas
Dentro dos espaços feministas, é assumido que #TodasAsMulheres experimentam assédio em locais públicos. As maneiras pelas quais esse assédio se manifesta — a idade em que começa, sua intensidade ou forma, as conseqüências de denunciar — podem variar dependendo das diferentes características da pessoa. Mas, todas as mulheres, segundo nos dizem, conhecem o medo, a vergonha e/ou a raiva que vêm junto com a atenção sexual indesejada.
É compreensível a existência dessa presunção. Quando trabalhamos a partir de um fato da realidade, sendo uma verdade coletiva, é mais fácil discutir as nuances, as diferenças e as complexidades envolvidas nesse miolo. É mais fácil construir discussões dinâmicas internas a partir da sólida base de uma experiência em comum.
Esta é uma suposição útil — mas também é prejudicial.
Eu sou uma mulher de 26 anos de idade que nunca foi assediada na rua. Eu nunca recebi assovios em meu caminho para a escola, ninguém buzinou para mim num estacionamento, ninguém me olhou de forma maliciosa num trem, não me apalparam na fila da Starbucks ou qualquer outro tipo de assédio sexual que ocorrem em locais públicos. Eu não tenho medo de sair de casa porque terei que evitar homens agressivos ou insistentes. Eu não preciso mapear mentalmente várias rotas para casa, procurando locais onde eu possa ser menos abordada.
Eu não sei o que são o medo, a vergonha e/ou a raiva que vêm junto com a atenção sexual não desejada. Entretanto, uma parte de mim, que não é insignificante, deseja sentir isso.
Eu não sou excepcionalmente sortuda nem estou exagerando ou sublimando isso tudo. Eu sou uma usuária de cadeira de rodas: uma mulher que visivelmente tem uma deficiência física. E minha cadeira de rodas age como um estranho tipo de campo de força. As pessoas veem primeiro a “deficiente” antes de perceberem a “mulher” e a primeira impressão é a que fica porque, em nossa sociedade capacitista, um corpo com deficiência é automaticamente um corpo dessexualizado. Somos pessoas grotescas ou trágicas, excêntricas ou anjos, existimos para sermos temidos ou lamentados, dependendo de como o olhar capacitista nos vê naquele dia. Porém, não importa como nos olham, não somos desejáveis.
Mesmo aos vinte e poucos anos, o fato de eu nunca ter sido assediada nas ruas parecia ser mais uma evidência para sustentar a crença de que eu não poderia ser sexualmente desejável. Alguma parte traiçoeira e insistente de mim obviamente acreditava que eu nunca poderia atrair nenhum homem decente, sendo assim, atrair os piores tipos de homens era o melhor que eu poderia esperar. Se eu não conseguisse fazer nem mesmo isso, então talvez realmente meu corpo fosse totalmente inútil.
Eu invejava minhas amigas quando elas falavam sobre o quanto dói ser reduzida a nada além de um objeto sexual. Eu odiava que isso as machucasse e, na maioria das vezes, entendia porque isso acontecia. Eu também sabia que o assédio em locais públicos era frequente e estava aumentando; que as mulheres que rejeitavam essas abordagens podiam ser feridas ou até mesmo mortas.
Porém, da mesma maneira que odiava meu ciúme, eu ansiava por um assovio desconhecido direcionado para mim. Apenas uma vez, eu queria que um homem olhasse para mim de soslaio em algum lugar, obviamente imaginando todas as coisas que ele poderia fazer com meu corpo. Eu criei fantasias com homens me seguindo pelo campus da universidade, dizendo: “Oi, gostosa! Por que não vem aqui um minuto, gatinha?”.
Por que minha experiência é tão invisível para a comunidade feminista?
Quando procurei abrigo em espaços feministas na internet — supostamente espaços seguros — à procura de apoio, o que encontrei foram discussões intermináveis sobre a onipresença do assédio em locais públicos. Ali, estava uma verdade universal de que o assédio é uma consequência do sexismo, da misoginia e da cultura do estupro. E que isso era algo que todas as mulheres podiam entender e reagir contra. Ali, estava nossa experiência unificadora.
Encontrei o feminismo e pensei: talvez eu também seja ignorada aqui.
Eu não espero que todos os debates sobre assédio em locais públicos tenham que começar com uma nota explicativa e eu certamente não espero me ver refletida em cada texto, artigo ou tweet sobre o assunto. Mas, essa notória suposição útil de que “Todas as Mulheres Vivenciam o Assédio Nas Ruas” é inevitavelmente excludente. Essa não é a intenção, mas, como as feministas devem saber, a intenção não elimina os danos.
Ninguém tem a intenção de dizer que, se uma mulher não estiver dentro da maioria que enfrenta o assédio em locais públicos, então elas não contam, mas, no entanto, essa conclusão está lá. Apesar das melhores intenções, a forma como as feministas tendem a discutir o assédio em locais públicos, como um fato concreto para todas, reforça conceitos capacitistas dentro do feminismo porque é apenas um elemento da questão se o seu corpo é visto pelo patriarcado como um objeto sexual. O meu não é.
Além disso, esta suposição ignora uma forma diferente de assédio enfrentada pelas pessoas com deficiências. O assédio, afinal, não é realmente sobre sexo, mas sobre poder — e meus assediadores me machucam pelo poder da dessexualização. Eles usam comigo a mesma voz que usariam com uma criança de 3 anos. Eles passam a mão na minha cabeça como fariam com um cachorro. Eles olham para minha cadeira enquanto mandam suas crianças ficarem quietas e não fazerem perguntas. É mais preconceito que assédio sexista (vindo de todos os gêneros) que experimento em abordagens frequentes nas ruas.
Essa dessexualização também me torna vulnerável ao abuso. Embora as mulheres com deficiência não sejam frequentemente vistas como objetos sexuais, há maior probabilidade de que sejamos estupradas e abusadas sexualmente do que as nossas semelhantes sem deficiências. Quando você internaliza em conjunto a ideia sexista de que as mulheres são valiosas por causa de seu potencial sexual (para os homens) e a ideia de que você não tem qualquer potencial sexual, você pode se tornar uma presa fácil.
Eu não fantasio mais sobre ser assediada, mas eu senti uma emoção inegável uma vez no ano passado quando um cara me enviou mensagens no OKCupid dizendo: “chupa meu pau, gostosa”. Eu não respondi, mas mantive isso guardado por um tempo. Sua presença era quase reconfortante. Naturalmente, esse conforto estava atrelado com a insuportável culpa e ódio por mim mesma, mas eu me apeguei com força.
Eu não sei se vou parar de querer esse selo patriarcal de aprovação — ou a aprovação feminista para esse assunto. Talvez um dia, a maneira com que eu me relaciono e interaja com o meu corpo vai significar mais para mim do que o modo como o resto do mundo me trata. Por enquanto, talvez, seja suficiente falar e ser ouvida.
Reconhecimento. Isso é tudo que eu peço.
Autora – Kayla Whaley tem formação na Clarion Writers’ Workshop e é editora na Disability in Kidlit. Também tem textos publicados nos sites The Toast, The Establishment e Uncanny Magazine. Ela vive fora de Atlanta com muitos livros e um número ainda não suficiente de gatos, mas pode ser encontrada com mais frequência sendo sincera na Internet. Twitter: @PunkinOnWheels.
* Texto retirado do site Blogueiras Feministas (acesse aqui)
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