Cantora cega encanta e ensina

31/01/2021 Deficiência Visual, Destaques, Histórias de vida, Notícias 0

Decidiu que iria estudar música na USP apesar de seus pais preferirem um emprego com carteira assinada.

“Tendo deficiência visual desde um ano e dois meses de idade. Aprendi que o mundo, apesar de ser recheado de imagens e cores, também é repleto de maravilhas que os olhos não são capazes de enxergar”. A fala é de Giovanna Maira da Rosa Silva, ou simplesmente, Giovanna Maira, cantora lírica brasileira (soprano), compositora, instrumentista, escritora e apresentadora de TV. Giovanna também é totalmente cega devido a um retinoblastoma bilateral. Nascida na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, município a 345km da Grande São Paulo, no dia 3 de outubro de 1986 (34 anos, portanto), Giovanna começou a perceber os problemas de visão com menos de um ano. “Minha mãe me apontava um amiguinho e eu não conseguia achar. Ela falava ‘olha, Giovanna, um avião no céu!’, e eu olhava para o sol, não para o avião”, conta. Os pais também percebiam, mas não imaginavam a gravidade da situação. No aniversário de um ano, veio a prova definitiva. Nas fotos da festa, os olhos de Giovanna refletiam o flash das câmeras de um modo muito estranho. “O brilho nos meus olhos era como se você apontasse um farol no olho de um gato”, explica.

A esta altura, Giovanna e a família haviam se mudado para Osasco, Região Metropolitana de São Paulo, para morar com a avó materna. Com o episódio das fotos do aniversário, os pais a levaram a um oftalmologista e foi feito um exame de retina de fundo de olho. O diagnóstico de câncer foi confirmado, nos dois olhos. E mais: ele estava no grau máximo e precisaria ser removido imediatamente. No dia 10 de dezembro de 1987, com um ano e dois meses, Giovanna realizou a cirurgia em um dos olhos. Segundo ela, não houve tanta diferença. “Depois de perder a visão de um dos olhos, eu realmente não senti falta”, afirma. No dia 29 de dezembro, ela retirou o tumor do segundo olho, perdendo totalmente a visão. “A segunda cirurgia foi mais difícil pra mim. Eu voltei pra casa amuada, parei de andar, de engatinhar, tive uma pequena regressão”, lembra Giovanna. Contudo, sua recuperação também foi rápida, segundo a própria. Pouco a pouco, ela foi se adaptando e voltando a andar. “Acho que isso é que é bonito na criança, ela se adapta com muito mais facilidade”, disse.

A música, então, entra na vida da pequena Giovanna. Por um sugestão de um dos médicos, os pais de Giovanna começaram a introduzir a música na vida da garota. “Minha mãe conta que, por não definir o que era noite e o que era dia, com dois aninhos, vira e mexe eu acordava de madrugada, saía da cama, entrava debaixo da pia, onde ficavam guardadas as frigideiras e panelas, e começava a brincar de bateria!”, conta. Os pais estimulavam a filha com tudo que é brinquedo sonoro – pianinho, violãozinho, boneca que fala, bolinha com guizo. O favorito era um gravador com microfone. “Eu cantava o dia inteiro, contava historinhas… Ali era o meu mundo”, diz ela. Giovanna iniciou os estudos de piano ainda aos três anos de idade, no Colégio Nossa Senhora da Misericórdia. Ainda aos três anos, passou a frequentar a Laramara (Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual), onde aprendeu braile e a se movimentar com a bengala. Porém, só foi se dar conta de que era “diferente” aos cinco anos, quando entrou no “prézinho” e começou a sofrer com as boladas e pisões de alguns colegas. “O ser humano é assim. O que ele não conhece, ele rechaça”, lamenta. A mãe a ensinou a levantar a cabeça: “vai lá e mostra que você pode fazer tudo o que eles fazem”.

Giovanna cresceu destemida e endiabrada, driblando qualquer chance de superproteção. Pequena ainda, gostava de “tomar banho” no filtro de barro ou atropelar o povo na fila do banco, pedalando seu triciclo na calçada. Maiorzinha, suas diversões eram subir na laje para soltar pipa com a molecada e andar de bicicleta na rua! “Eu não me acidentava! ‘Acidentava’ as pessoas!”, conta, rindo. Ao mesmo tempo, era ótima aluna. “Lembro de uma vez, na quarta série, em que eu tirei 9.1 em matemática. Saí da escola e liguei para a minha mãe aos prantos”, conta. Aos 10 anos, pediu para estudar canto. Ela trocara o piano pelo teclado aos cinco e estava familiarizada com o palco, pois participava dos recitais de fim de ano. Foi matriculada numa escola de música e, aos 12 anos, no Conservatório Villa-Lobos. Suas preferências abrangiam de Laura Pausini e Marisa Monte à música negra norte-americana (Aretha Franklin, Ray Charles, Stevie Wonder). Formada em canto popular aos 16 anos, decidiu que iria estudar música na USP (Universidade de São Paulo). Descobriu que teria de fazer uma prova de aptidão antes do vestibular e que o ensino da USP era voltado para música erudita, para a qual ela torcia o nariz. Os pais, por sua vez, preferiam que a filha escolhesse uma carreira com carteira assinada, mas não conseguiram dissuadi-la.

Autobiografia de Giovanna, lançada em 2016, com audiodescrição e versão em ebook.

A paixão pela música já estava bem consolidada. A ideia de que ela teria seu mundo ampliado nunca foi tão verdadeira. Para a prova de aptidão da USP, Giovanna se preparou estudando canto lírico com o tenor, professor de canto e diretor artístico da Duo Conexões Culturais, Paulo Mandarino, e, aos 17 anos, entrou na USP, em 2004. “Por ser a melhor universidade do país, você acha que terá uma infraestrutura fantástica, computadores acessíveis, material em braile, mas não é o que acontece”, fala. Para se formar, ela precisou contar com a ajuda dos colegas e a boa-vontade de alguns professores, que doavam parte do seu tempo para ajudá-la a copiar partituras. Nos fins de semana, ia à Zona Leste da capital para estudar, por conta própria, musicografia braile. Uma surpresa foi se apaixonar pelo estilo erudito, na universidade: “Abandonei minhas crenças antigas e fui jogar no time dos intelectuais da música”, brinca.

Nessa época, Giovanna vinha ganhando visibilidade como cantora e tecladista do Ballet para Cegos Fernanda Bianchini, participando de programas na TV. Em 2005, cantou “The Music of the Night” (de O Fantasma da Ópera) no Ginásio do Ibirapuera, São Paulo, em um show do projeto Criança Esperança, acompanhada por um ballet de dançarinas com deficiência visual. Paralelamente, se apresentava em casamentos. Em 2006, pinçou uma música mais recorrente no repertório – “Can You Feel the Love Tonight”, de Elton John, da trilha de O Rei Leão – para competir em um concurso de jovens talentos com deficiência promovido pela Very Special Arts. O vídeo agradou: com sua voz de soprano, Giovanna bateu concorrentes de 86 países, ganhou o concurso e, de quebra, uma viagem para Washington D.C. e a chance de se apresentar no John F. Kennedy Center, centro de artes localizado na margem do rio Potomac, junto ao Complexo Watergate, em Washington, D.C.. O Centro foi inaugurado em Setembro de 1971 e abriga espetáculos de dança, música, teatro, ópera e outros tipos artísticos.

Em 2007, a cidade do Rio de Janeiro cediou os Jogos Panamericanos e os Jogos Parapanamericanos. Giovanna foi convidada para cantar na abertura do Parapan, no estádio do Maracanãzinho. Regida por João Carlos Martins (leia aqui matéria sobre o maestro), interpretou como solista a “Bachiana nº 5”, obra do compositor, maestro, violoncelista, pianista e violonista carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959), acompanhada pela Orquestra Bachiana Jovem. Nos anos de 2005 e 2008 cantou para o então presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) e, em 2013, para a então presidenta Dilma Rousseff, em evento particular no Palácio do Planalto. Giovanna realizou, em 2013, a turnê Bravo Pavarotti, ao lado do tenor Jorge Durian e a Orquestra Monte Carlo, na Flórida, que teve seu ápice na Galeria do pintor, escultor e serígrafo brasileiro radicado nos Estados Unidos, Romero Britto, em Miami. No primeiro semestre de 2016, Giovanna lançou sua autobiografia, Escolhi a Vida, acompanhada de EP com músicas autorais interpretadas com toda a sensibilidade que lhe é característica. O livro conta com audiodescrição e versão em ebook, de forma a ser totalmente acessível.

Seu primeiro álbum, Um Outro Olhar, foi lançado de modo independente em 2008, pelo estúdio Staccatus Studio, com canções regravadas e quatro faixas de própria autoria. Em 2013, sob produção de Alex Gil e Jorge Durian, Giovana Maira lançou seu segundo álbum, A Look Beyond, inaugurando seu ingresso no estilo crossover. Em 2017, juntamente com os Tenores Jorge Durian e Armando Valsani, Giovanna forma o grupo “A Bela e os Tenores”, passando a se apresentar nos mais diversos palcos do país. Na sequência, lançam seu terceiro álbum, Hallelujah, com produção de Alex Gill, interpretando áreas sacras e canções natalinas. No ano seguinte, realizam o grande sonho de se tornarem apresentadores de TV, estreando, pela Rede Vida de Televisão, o programa “A BELLA ITÁLIA”. “Eu tive muita sorte. Mas, a maioria das pessoas com deficiência, e isso é confirmado estatisticamente, nasce em famílias pobres, pobres mesmo. Essas pessoas muitas vezes não saem de casa por não terem uma cadeira de rodas, uma sonda, por não terem uma bengala. Essas pessoas precisam de ajuda”, afirmou Giovanna Maira.

* Leia Entrevista da Revista Reação com Giovanna Maira aqui

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