Surdos exigem mais Libras
Um fato bastante pitoresco e, até então, inédito chamou a atenção do país na cerimônia de posse do atual presidente da República, no dia 01º de janeiro de 2019: o discurso em Libras (Língua Brasileira de Sinais) da primeira-dama Michele Bolsonaro. Em nenhuma outra cerimônia de posse, as primeiras-damas Rozane Collor, Ruth Cardoso e Marisa Letícia, sequer, abriram a boca, muito menos assumiram tal protagonismo. O ato de Michele, dirigindo-se a um público de quase 18 milhões de brasileiros e brasileiras, merece destaque e aplausos (moderados, diga-se, não o fuzuê que causou à época). Um contingente enorme de pessoas, provavelmente, surdos e/ou eleitores do marido dela, se emocionou e pudemos ouvir, de diversas bocas, que o Brasil, finalmente, se tornaria um país inclusivo. Michele se tornou uma espécie de musa de parte da comunidade surda. Ou seja, o gesto da primeira-dama serviu ao seu propósito, qual seja, desviar a atenção da mídia e do público do marido dela, que certamente não teria o que dizer, e ainda criar uma ilusão acerca do governo dele, ilusão que foi desfeita logo no dia seguinte (para saber mais sobre isso, clique aqui). O presidente passou a ser acompanhado, em todos os pronunciamentos à nação, e nas suas famigeradas lives de quinta-feira, por um intérprete de Libras. Na celebração da posse do ex-Advogado Geral da União, André Mendonça, no STF (Supremo Tribunal Federal), a senhora Bolsonaro repetiu o ato de falar em Libras. Novos tempos?
Nem tanto assim, vamos com calma. A comunidade surda sempre foi desrespeitada no quesito comunicação. Fato. Como tudo no Brasil acontece atrasado em relação aos chamados países de primeiro mundo, é uma tarefa inglória encontrarmos intérpretes de Libras em locais públicos com alta circulação de pessoas. Outro fato. Vale lembrar que a existência de um intérprete não é favor de Michele, do seu marido, de ninguém. Em 24 de abril de 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) assinou a Lei 10.436/02, também conhecida por Lei de Libras, reconhecendo “a Língua Brasileira de Sinais como meio legal de comunicação e expressão e estabelecendo como parte do poder público em geral, instituições de saúde e educação e empresas concessionárias de serviços públicos garantir o apoio do uso e difusão da Libras em todo território nacional”. E mais: em seu artigo 3o, estabelece: “A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Em outras palavras: a Libras é coisa séria e precisa ser tratada como tal. É Lei. Por Lei, é considerada a segunda língua oficial do país, mas, como muitas leis por aqui, não é cumprida em sua plenitude. É certo que existem inúmeras iniciativas positivas e que a realidade hoje, 2022, é bem diferente da realidade de vinte anos atrás. Porém, os surdos ainda sofrem um grande número de barreiras atitudinais no seu dia a dia. Celso Farias, coordenador do Setorial Estadual Ceará da Pessoa com Deficiência do Partido dos Trabalhadores (PT), em entrevista ao canal de Sem Barreiras do Youtube (aqui), enalteceu a Lei 10.436/02 pelo surgimento de cursos universitários e pela inclusão de intérpretes em diversos serviços públicos, mas alertou que a inclusão ainda está longe de acontecer. Serviços essenciais de saúde não contam com intérpretes, gerando situações terríveis como o de uma mulher surda que estava grávida de gêmeos, aqui em Fortaleza, e não teve condições de dizer ao médico dos dois bebês por não haver intérprete na sala de parto. Um bebê nasceu e o outro morreu. Margarida Pimentel, intérprete de Libras, conta que, até pouco tempo, tinha surdo com depressão que precisava de psicólogo e ia pro Sul do país porque lá sempre encontra psicólogos proficientes em LIBRAS, surdos formados em Psicologia.
A expectativa de uma maior inclusão, criada pela iniciativa da primeira-dama, não se confirmou. As escolas ainda são um problema, assim como a entrada no mercado de trabalho. Em ambas, a comunicação e o preconceito são barreiras difíceis de transpor. É o capacitismo se manifestando ou, nas palavras de Celso Farias, é “um problema cultural”. A comunicação com os surdos exige a proficiência em Libras e não é fácil obtê-la. Não é um conhecimento disponível a qualquer pessoa, em qualquer lugar. A questão cultural é a mais grave. Como não vemos a Libras sendo praticada a céu aberto, ou seja, naturalmente, apenas em eventos com organização ou voltados ao público surdo, a sociedade não se habituou a entender a Libras como direito e como algo natural. Aquilo que não vemos, não entendemos, não respeitamos e não exigimos que seja praticada quando ela não existe. A legislação, por exemplo, determina aos meios de comunicação que ofereçam formas de linguagem para os surdos – Libras ou legendas -, mas isso não acontece. Os telejornais não possuem interpretação de Libras, nem mesmo nas entrevistas em períodos eleitorais, isolando a comunidade surda dos debates e discussões acerca do país. As transmissões esportivas também não possuem, assim como shows musicais, teatrais, etc. É uma infinidade de eventos que acontecem sem que a comunidade surda tenha a possibilidade de participar.
No início de fevereiro, Sem Barreiras enviou às redações da Revista Fórum, Brasil 247 e Diário do Centro do Mundo, um questionamento, via e-mail, de por que não há intérprete de Libras nas lives produzidas por estes canais. Infelizmente, não obtivemos respostas de nenhum deles. Foi questionado ainda se havia planos para a inserção de um profissional. Sem Barreiras entende as dificuldades desta prática, especialmente, financeiras. Nós mesmos, aqui no blog, não oferecemos Libras em todas as lives. Em vídeos gravados, colocamos legendas. É um erro que estamos buscando solucionar, mas creio que empresas muito mais estruturadas e com bem mais condições financeiras não têm justificativa para não possuir intérprete. A não ser claro o tal “problema cultural” que falamos acima. As pessoas com deficiência são tão invisíveis que a sociedade “esquece” que também fazemos parte das decisões e discussões diárias, que elas também influenciam em nossas vidas cotidianas e também podemos contribuir para a solução dos milhares de problemas que afligem nosso país. Mas, como fazê-lo se somos excluídos e nos é negado o direito à comunicação mais básica? Thomas Hobbes, em seu livro Leviatã, de 1668, escreveu “scientia potentia est”, que pode ser traduzido por Conhecimento é poder.
A frase implica que, com a aquisição de conhecimento e da educação, nosso potencial e habilidades na vida aumentarão. Talvez ela não deva ser aplicada ao caso em si deste artigo, a Libras, mas, com certeza, cabe como uma luva para diversos outros problemas da nossa sociedade. Daí porque é muito estranha a dificuldade do Partido dos Trabalhadores em adotar o intérprete de Libras como parte essencial de seus eventos públicos. O PT tem recebido diversas críticas da comunidade surda por negligenciar este público ao não se preocupar em colocar um intérprete em discursos do ex-presidente Lula, de seus principais dirigentes ou reuniões online. Em março de 2021, o partido realizou a primeira entrevista coletiva de Lula depois de sua saída da cadeia, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, um evento com altíssimo grau de expectativa de todos os filiados, inclusive, os surdos. Mas, sem Libras. O fato gerou uma reação indignada dos surdos nas redes sociais. Sem Barreiras entrou em contato com o presidente do Diretório Estadual do PT, Antônio Alves Filho, o Conim, que lamentou o ocorrido e afirmou que “no PT do Ceará, temos procurado sempre assegurar a acessibilidade do conteúdo que produzimos”. Rubinho Linhares, coordenador do Setorial das Pessoas com Deficiência do PT, órgão responsável pela defesa das pautas da categoria no âmbito partidário, informou à época que o partido, através do tesoureiro da Fundação Perseu Abramo, Jilmar Tatto, iria designar uma verba destinada aos intérpretes de Libras, garantindo sua presença em todos os eventos.
A garantia, no entanto, não saiu do papel. As reclamações continuaram e não só quanto à ausência dos intérpretes, mas também quanto a sua “competência linguística”. Muitos surdos alegam não entender o que os intérpretes falam. Em fevereiro deste ano, Rubinho informou, em um grupo de whatsapp, que o PT havia assinado um contrato com uma empresa sediada em Brasília para que se responsabilizasse com a indicação de intérpretes na TVPT. Sem Barreiras buscou se informar o nome desta empresa junto ao Setorial Nacional, mas foi informado pelo seu coordenador que a escolha ficou a cargo da tesouraria do partido e que não foi informado do nome da tal empresa. Caso esta informação nos chegue após a postagem deste texto, atualizaremos.
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