Mulheres autistas omitem traços do transtorno, mas isso afeta saúde mental
Bianca Galvão, 24, descobriu seu diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista) — omitido pelos pais — quando se identificou com uma explicação sobre masking, ou “camuflagem social”, expressão que se refere a um conjunto de comportamentos adotados conscientemente ou não para mascarar os traços do autismo.
O termo vem ganhando popularidade, ainda que seja uma conhecida tentativa de esconder o autismo. Ele é mais comum entre mulheres, para se defender de preconceitos sociais aos quais estão expostas as pessoas neuroatípicas (ou atípicas). Entretanto, segundo os especialistas ouvidos pelo VivaBem, a tentativa de parecer ser quem não é pode ter alto custo para a saúde mental.
Mascarando estereotipias
Andar nas pontas dos pés, agitar as mãos e a cabeça são movimentos chamados de estereotipias, comportamentos repetitivos comumente observados no TEA. Essas podem ser entendidas como formas de aliviar a tensão —semelhante ao ato de agitar as pernas em um momento de ansiedade na sala de espera de um consultório médico. Principalmente na infância, as estereotipias podem indicar o autismo e, desde cedo, crianças aprendem a controlá-las para não serem vistas como diferentes.
Bianca conta que, quando criança, andava dando pontapés, e seu pai a repreendia pelo seu jeito diferente de andar. Segundo ela, “chutar o vento” era uma maneira confortável de sair à rua, mas que, com o tempo, aprendeu que não era a maneira socialmente vista como correta —e aqui, entra a camuflagem social. O masking consiste em disfarçar, suprimir ou esconder respostas de natureza social, sensorial, cognitiva ou motora de indivíduos com TEA, a fim de parecer mais neurotípico. Afinal, parecer autista pode levar ao bullying, isolamento social e à exclusão escolar.
Os especialistas destacam que isso pode ocorrer de forma consciente (quando o indivíduo consegue identificar e descrever o que está fazendo) ou inconsciente (quando não se identifica ou reconhece tal comportamento). São maneiras de driblar o capacitismo —discriminação e preconceito contra pessoas com deficiência.
“Na adolescência, eu tinha muita estereotipia facial. Eu fazia muita careta e morria de vergonha porque notavam isso na escola. Eu aprendi a segurar, reprimir esses traços para parecer o mais ‘normal’ possível”. Bianca Galvão”
Para parte dos autistas, manter contato visual é de grande desconforto e, por isso, é comum que busquem desviar o olhar enquanto se comunicam. Bianca conta que nunca gostou de olhar nos olhos, mas buscou mudar isso. “Uma vez me falaram que se você está conversando e não olha para a pessoa, é porque está mentindo. Eu fiquei com aquilo na cabeça e me forcei ao máximo olhar nos olhos”.
Interação social e mulheres autistas
O TEA também é caracterizado por dificuldades em áreas do neurodesenvolvimento como comunicação e interação social. Por isso, é comum que quem tem autismo use desses conjuntos de estratégias de camuflagem para buscar interagir socialmente e cumprir normas e regras sociais. Para isso, vale de tudo: fingir expressões para aparentar interesse em conversas, ensaiar frases e gestos bem vistos, imitar falas, tom de voz e gostos de pessoas populares.
Para os psicólogos ouvidos pelo VivaBem, a camuflagem é mais frequente durante a adolescência e vida adulta, porque é o momento no qual o indivíduo tem habilidades de imitação complexa e sequencial ou de segmentos de regras bem estabelecidas. Nessa fase, a demanda social é maior: fazer amigos, namorar e ter boas relações no trabalho, por exemplo.
Foi justamente na adolescência que Bianca começou a sair para eventos e festas e percebeu que era diferente das outras meninas. “Eu tinha dificuldade de fazer amizades, ficava com cara fechada e só hoje entendo que temos um ‘rosto social’ para as pessoas se aproximarem da gente. Na época, eu ficava quieta no meu canto”, diz.
Ela conta que sempre foi vista como a garota estranha da escola onde estudava e aproveitou a mudança de colégio para mudar conscientemente seu comportamento, mesmo ainda sem saber do seu diagnóstico. “Eu fui ser uma nova Bianca, imitava o comportamento das outras pessoas que eram bem vistas”, diz.
Por mais que o TEA seja diagnosticado quatro vezes mais no sexo masculino, o masking é mais relacionado a mulheres autistas, e isso se deve a causas clínicas e sociais. Estudos indicam que diferenças neurológicas entre homens e mulheres podem influenciar em diferenças nas características clínicas do TEA, levando as mulheres a desenvolverem mais interesses restritos ligados a aspectos sociais do que os homens.
Culturalmente, meninas são ensinadas desde cedo a se comportarem de forma específica em situações sociais. Um exemplo são brincadeiras em que cuidam de bebês (bonecas) que estão chorando e é necessário identificar se é fome, dor, ou se querem carinho —e então devem aprender a solucionar esse problema lhe oferecendo alimento, por exemplo. As brincadeiras de meninas simulam comportamentos sociais do dia a dia.
As garotas são incentivadas, desde cedo, a conversarem, demonstrarem afeto e outros tantos comportamentos sociais desencorajados em meninos. Outro fator para maior frequência do masking em mulheres é que elas têm uma tendência a corrigir o comportamento umas das outras e dão dicas do que seria adequado em determinadas situações e, em sua maioria, verbalizam mais seus sentimentos e emoções, além de serem mais atentas às pessoas ao redor. Determinadas culturas ensinam as meninas e mulheres a fazer melhor rastreio do ambiente e usar estratégias de camuflagem.
O custo emocional de ser aceito
“Mudando meu comportamento, fiz várias amizades e fiquei muito popular na escola. O problema é que era tudo mentira e fingimento. Depois de dois anos fui diagnosticada com ansiedade generalizada e síndrome do pânico”, afirma Bianca. A exaustão emocional pode ser consequência da tentativa constante de forçar ser alguém que não é. O esforço que esses mecanismos exigem costuma resultar em quadros de estresse, ansiedade, depressão, fadiga e fobia social.
Somente quando teve contato com uma explicação sobre o masking que Bianca suspeitou sobre seu comportamento e, em conversa com a mãe, teve revelado o diagnóstico de TEA, que havia sido omitido por orientação médica. Aceitando quem é, ela passou a buscar não invisibilizar os traços que agora sabia que eram de autismo, mas abandonar o comportamento pode ser difícil. Bianca ainda não consegue deixar de forçar o olhar nos olhos das pessoas: “Eu fixo no contato visual e até esqueço o que a pessoa está falando”, afirma.
Vale destacar que o masking é diferente de habilidades sociais e competências sociais que ajudam a socializar. A camuflagem gera sentimentos de desconforto no indivíduo que o pratica e são mantidos, na maioria das vezes, para tentar se ajustar a uma demanda social, evitando assim prejuízos no grupo de amizades ou no ambiente de trabalho, por exemplo. Já no âmbito de habilidades e competências, há a diminuição dessas dificuldades com o estabelecimento de comportamentos relacionados às habilidades sociais.
“O masking é uma ferramenta de defesa, de se colocar na posição neurotípica para sofrer menos capacitismo, o que não seria necessário se viéssemos em uma sociedade inclusiva”, afirma Bianca.
Para os especialistas, melhorar e ampliar os serviços diagnósticos, terapêuticos e de conscientização da comunidade como um todo é fundamental para que pessoas com TEA não se sintam coagidas a mascararem suas características ou comportamentos. E ainda há lacunas acadêmicas quanto ao entendimento desse comportamento.
Fontes: Alda Batista de Oliveira, mestre em psicologia pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e especialista indicada pelo professor titular Antônio Roazzi; Katarina Kataoka, psicóloga doutorado pela UFPA (Universidade Federal do Pará) especialista indicada pelo professor titular Thiago Dias Costa; Nassim Chamel Elias, professor do departamento de psicologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).
* Matéria de Guilherme Gama, Colaboração para o VivaBem (clique aqui).
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