Saúde mental dos pais de autistas

08/05/2022 Deficiência Intelectual, Notícias 0

Anderson e a esposa Débora são pais de Luísa, 4, e Dylan, 2, ambos com autismo.

“Minha vida, do acordar ao dormir, já não é a mesma. Minha relação com minha esposa é outra, minha relação com meu filho é outra, minha relação em casa é outra, na faculdade, em todos os lugares. A gente quase nem se olha em relação ao matrimônio como um todo, porque estamos totalmente focados em desenvolver aquela criança”. Lucas Braga, 31, é pai de Pedro, 5, que é autista, e de Eliza, de 2 meses. Ele descobriu que o filho tinha TEA (Transtorno do Espectro do Autismo – leia mais aqui) há pouco menos de três anos.

Segundo Lucas, que mora em Nossa Senhora do Socorro (SE), ele e a esposa “caíram de cabeça” nas instruções de tratamento em casa, porque faltava dinheiro para pagar as terapias necessárias e o que conseguiam não era uma quantidade de horas adequada. “A gente quase nem parou para sofrer, digamos assim. A gente percebe que é necessário cuidar da [nossa] saúde mental, mas não temos esse tempo hábil. Infelizmente, passamos por maiores dificuldades por não termos nem a questão financeira folgada nem a questão de tempo”.

A falta de recursos financeiros para lidar com os onerosos tratamentos que o TEA demanda é um grande problema enfrentado por boa parte dos pais. Até por isso que cuidar da própria saúde mental fica ainda mais em segundo plano, pois não sobra dinheiro suficiente.

Anderson Marques, 31, de Brasília (DF), pai de Luísa, 4, e Dylan, 2, ambos com autismo, diz que sabe da importância de cuidar da própria saúde mental, mas que o tempo para isso é escasso. “Emocionalmente falando, é realmente uma rotina desgastante, porque tem semanas que a gente dorme 2, 3 horas por noite, dias que a gente passa cheio de compromissos com terapia, escolas, consultas, exames. É algo que conversamos de vez em quando, que seria importante fazermos uma terapia também, porque se não estivermos bem emocionalmente, com a cabeça no lugar, talvez a gente não consiga cuidar deles da melhor forma. Até mesmo o lazer a gente deixa de lado, por saber que para eles também não vai ser uma experiência agradável”, afirmou Anderson Marques.

No caso dele, o baque do diagnóstico foi amenizado porque ele já desconfiava há algum tempo. Apesar de ter ouvido de um pediatra de confiança que os aparentes atrasos em sua filha eram “normais” para a idade, ele não se convenceu. Foi em uma consulta com o neurologista que confirmou sua suspeita.

“Para minha esposa, foi mais difícil do que para mim porque eu fui meio que aceitando e buscando informação antes. Depois que procuramos uma neuropediatra, ela apontou vários sinais que a gente percebia no dia a dia, e não sabíamos o motivo. Por exemplo, a questão de barulho. Na época, quando ligava o liquidificador, minha filha ficava extremamente nervosa, chorava, gritava”, lembra o fotógrafo.

Segundo Anderson, foi mais fácil identificar o TEA no segundo filho, porque já sabiam mais sobre o assunto. “É óbvio que torcíamos para que não fosse, mas já estávamos mais preparados, não sentimos tanto o baque assim da confirmação”, conta.

Ele pontua que cada autista difere entre si. Entre seus dois filhos, há demandas e dificuldades diferentes, mas com um empenho em dobro, o que deixa a saúde mental dele e de sua esposa ainda mais em segundo plano.

Rede de apoio pode ajudar

De acordo com uma revisão de estudos feita por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, estar em contato com uma criança autista, na condição de cuidador, pode causar um impacto significativo e emocional nas famílias, além de gerar níveis mais altos de estresse, quando comparado com cuidadores de crianças com desenvolvimento típico.

Segundo o estudo, ainda que os cuidadores se queixem de algumas manifestações clínicas (como hiperatividade, impulsividade, auto e heteroagressões e outras condições), as maiores das tensões são atribuídas diretamente ao fardo financeiro das intervenções e à ausência de suporte social.

“Sabe-se que a criança diagnosticada com TEA necessita de cuidados especiais e terapias intensas. Todavia, sem os suportes adequados, as famílias não conseguem desenvolver estratégias de enfrentamento para uma boa qualidade de vida de forma geral”, disseram os autores.

Para Alexandre Valverde, escritor, médico psiquiatra pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e também autista, a depender das dificuldades, a rede de apoio ajuda muito. “Imagina uma mãe que possui um filho autista não verbal. A estrutura e apoio que a criança e a mãe vão receber permitem um novo olhar”.

O psiquiatra ainda pontua que a experiência dos pais de crianças com TEA vai ser muito distinta conforme o grau do autismo daquela criança. “Em casos do diagnóstico de autismo mais severo, não verbal ou com uma deficiência intelectual, é mais difícil e demanda muita atenção e dedicação dos pais. Só que em muitos casos, quem acaba assumindo esse papel é a mãe, e isso acaba tendo uma ação e influência sobre sua carreira, seus relacionamentos e gera um sentimento de solidão”, conta.

Jaqueline Araújo Muniz dos Reis tem toda sua atenção voltada às duas filhas, a mais velha, Luiza, com autismo leve.

Mães são mais afetadas

Um estudo publicado na revista de Iniciação Científica da Unesc (Universidade do Extremo Sul Catarinense) mostrou que as mães são as mais afetadas pelo estresse, em razão da maior sobrecarga nos cuidados diários com a criança. Em muitos casos, chegam a abrir mão da carreira profissional e da vida social, vivenciando sentimentos de solidão e isolamento.

Jaqueline Araújo Muniz dos Reis, 37, de São Paulo (SP), é formada em administração, mas, no momento, não trabalha e tem toda a sua atenção voltada para suas duas filhas. A mais velha, Luiza, 12, enquadra-se no considerado “autismo leve”, do nível de suporte 1. E, apesar disso, suas dificuldades, sobretudo no que tange a relacionamentos e sociabilidade, não são menores.

“Eu faço terapia e fui encaminhada para um instituto de psiquiatria também, porque eu precisava estar bem para poder cuidar dela. Ela teve duas tentativas de suicídio por conta da depressão, que vem do autismo, porque ela começa a sentir que não pertence a lugar algum. Existe um capacitismo muito grande em cima do autista suporte nível 1, porque os outros agem como se ele estivesse inventando. E isso se dá em todos os lugares, da escola ao terapeuta. Cheguei a passar com um psiquiatra que falou que era impossível ela ser autista porque ela tinha empatia. É surreal o despreparo”, disse Jaqueline Araújo Muniz dos Reis.

O diagnóstico de Luiza, assim como de tantas outras crianças, veio de forma tardia e depois de muito desencontro de informações. Desde que voltou à escola presencialmente, Jaqueline conta que sua filha já foi alvo de diferentes agressões, físicas e verbais, por ser “aparentemente normal”, e então, descreditada.

“Toda mãe fica feliz quando o filho vai para escola, mas nós não. Ficamos com medo, porque já sabemos que quando ela voltar, vai ter sempre algo diferente acontecido. É com certeza o lugar mais cruel, e é utopia achar que existe alguma instituição perfeita para um autista, não existe, principalmente no grau da Luiza”, diz Jaqueline.

A mãe diz que não pode se descuidar em nada. Além do medo de a filha tentar suicídio novamente, tem a questão dos horários de consultas e até de alimentação, porque a medicação depende de Luiza ter comido.

Um estudo feito por pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo sobre autismo infantil e estresse familiar mostrou que alternativas de enfrentamento são trabalhos de aconselhamentos, orientações, apoio social por meio de instituições de atendimento às crianças, principalmente, e os acompanhamentos terapêuticos.

Apesar de fazer terapia, Jaqueline diz que falta acesso a locais onde poderia criar redes de apoio e dividir experiência e conhecimento. “Dentro da comunidade autista tem palestras e congressos. Mas isso é acessível para nós, os pais? Só pessoas muito conhecidas ou ricas vão, eu não vejo isso chegar na grande maioria: pessoas de baixa renda, pessoas que necessitam muito estar ali”, conta.

* Matéria de Gabriela Monteiro, em colaboração para o VivaBem

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