Moysés Martins, o rapper que mostra o ‘Brasil deficiente’
O homem de cabelos black power, óculos escuros, uma tatuagem no pescoço com a foice e o martelo (símbolos do comunismo), em cima de uma cadeira de rodas, é o cara mais conhecido do Jardim Noronha, no distrito do Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo. Em pouco mais de uma hora que ficou sentado na calçada em frente de casa, o rapper Moysés Martins cumprimentou mais de uma dezena de pessoas, entre crianças, idosos, mulheres e jovens.
Aos 46 anos de idade, Moysés mostra que superou o capacitismo há muito tempo. O rap foi só mais uma das armas que usou para encarar obstáculos do cotidiano de uma pessoa com deficiência física. “Tive que vencer dois preconceitos. Um por ser negro e o outro, por ser deficiente. Eu mesmo, por muito tempo, fui responsável pelo meu vitimismo, por aceitar a forma errada que as pessoas me olhavam e me julgavam”, declara Martins.
Filho mais novo dentre 7 irmãos e o único adotivo de Dona Zefa e Seu Nelson, Moysés contraiu poliomielite, conhecida também como paralisia infantil, quando tinha seis meses de vida. “Me considero uma pessoa abençoada. Assim como Moisés, que na Bíblia diz que foi adotado pela esposa do faraó do Egito. Da mesma forma, aconteceu comigo”, revela.
A doença só foi erradicada no Brasil em 1994, quando o rapper já tinha 18 anos. Nesse tempo a música já fazia parte da sua vida. O primeiro contato com estilo que moldou o seu caráter veio pelas ondas do rádio. “Tocava Racionais com ‘Pânico na Zona Sul’, Thaide, Os Metralhas…vixe! Me arrepio até hoje toda vez que lembro desses sons”, conta, mostrando os pêlos eriçados no braço.
Não demorou muito para que o garoto que passava a noite com o ouvido no rádio passasse a empunhar o microfone depois de rabiscar suas primeiras rimas. Seu primeiro palco foi na quadra de uma escola onde cantou, num mês de maio, para um público de 60 mães da comunidade. “Meu primeiro rap se chamava ‘Te Amo, Mamãe’ e foi da hora cantar para as mães dos meus parceiros. E olha que loucura, tempos depois, passei a ser educador nessa escola”.
Rap, Nietzsche e Deus
Em 1997, Moysés fundou o grupo A286. Segundo ele, ter uma banda para fazer rap era uma forma de se libertar. “Tinha chegado a hora de parar de ser um bebê chorão, que se lamentava pelas condições da vida. Eu perdi meu sobrinho Isaac, que também iniciou o grupo comigo. Então também foi por ele que eu decidi seguir adiante”, relembra. Só em 2007, 10 anos depois da sua fundação, é que o A286 lançou seu primeiro disco, Além do Crime e da Razão.
O envolvimento dentro do movimento hip-hop abriu uma série de possibilidades para Moysés. Uma delas foi fazer parte do Facção Central, um dos principais grupos de rap do Brasil. “Eu agradeço a Deus pelo rap ter entrado na minha vida. O convite do Eduardo Taddeo [fundador do Facção Central] veio muito por ele ter um irmão com deficiência e se sensibilizar pela causa também”.
Mesmo cantando as duras realidades da ruas, Moysés queria mostrar ao mundo uma visão própria sobre a realidade que vive e, por isso, se lançou em carreira solo lançando os discos Só Quem Convive Sabe (2012) e bRASIL dEFICIENTE (2015), onde rima sobre o cotidiano de quem tem algum tipo de deficiência no país.
Paralelamente ao rap, Moysés afirma que o que o ajudou a ter consciência do mundo que o cercava foi a leitura. E o interesse do morador da zona sul era por obras de grandes pensadores da filosofia moderna, como Friedrich Nietzsche, Hermann Hesse e Malcolm X.
Vindo de família evangélica, Moysés confessa que o seu modo de ver o mundo, naquela época, não era bem aceito dentro da sua casa. “Eu fui ateu por mais de 30 anos. Minha família me olhava meio torto, mas nunca fui discriminado por eles”, admite.
Atualmente, o rapper tenta aliar os ensinamentos que aprendeu nos livros com o evangelho. A religião, segundo ele, foi a maneira de se reconectar com a família e com ele mesmo. Membro da Igreja Adventista, Moysés prega, dá seu testemunho e manda suas rimas em diferentes congregações pelas periferias da capital paulista.
Moysés diz que as pessoas que acompanham seu trabalho desde os tempos de A286 ainda estão se adaptando com essa nova fase da sua carreira, já que sua conversão se deu durante a pandemia de Covid-19.
“Eu já estava indo na igreja havia um tempo, mas aí vem esse lance de doutrina que é uma parada muito louca, que eu assimilo com as coisas do socialismo, como quando eu leio sobre o apóstolo Paulo, que perseguia pobres e cristãos, e se ligou que a guerra dele tinha que ser em nome de Deus e contra o sistema”, compara o rapper.
Um caminho longo para os deficientes
De acordo com o último Censo do IBGE, de 2010, 3 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência vivem no estado de São Paulo. Dessas, 28,79% são pessoas com deficiência motora, assim como Moysés. Mesmo com um número expressivo de habitantes que precisam de infraestrutura específica para se locomover, ainda são muitos os percalços no dia a dia para quem anda numa cadeira de rodas.
“Posso dizer que os ônibus aqui da quebrada foram adaptados com os elevadores por minha causa. Sempre fui amigo de todo mundo aqui e sempre me ajudaram e ainda me ajudam, mas eu também quis a minha independência e reclamei muito. Antigamente só tinha um ônibus adaptado. Hoje todos têm”, afirma Moysés.
Ele conta que até mesmo dentro do hip hop teve que enfrentar problemas por conta da sua condição. “Lembro de uma vez que fomos tocar com o Facção num evento grande. Os caras que contrataram e produziram o show sabiam que tinha um integrante do grupo que era deficiente e, mesmo assim, fizeram um palco enorme, com diferentes partes e nenhuma delas tinha rampa. Só escadas. Aí não teve como. Tive que fazer um discurso reclamando dessa parada”, conta.
Moysés conta com o entusiasmo dos cadeirantes que se identificam com seu trabalho e fazem questão de mostrar isso de alguma forma. “Acho o maior barato quando nos shows aparece alguém levantando a cadeira de rodas. Só a gente sabe o trampo que é pra quem é deficiente conseguir colar num show de rap, num lugar com muita gente. Aí que eu vejo que a mensagem está chegando”.
* Matéria de Gil Luiz Mendes, da Ponte Jornalismo, canal de informações sobre Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos.
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