#Roltaxativomata
Em 1998, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foi instituído o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O que é isso? É uma lista com mais de três mil procedimentos, exames e medicamentos que devem ser garantidos pelas operadoras de planos de saúde. Qualquer usuário que necessitar desses procedimentos ou medicamentos tem a garantia da cobertura do plano. Caso o procedimento, exame ou remédio não esteja na lista, era possível acionar a justiça e conseguir a cobertura do plano através de uma liminar, pelo fato do rol ser exemplificativo, ou seja, apenas uma referência, um mínimo de cobertura. Inúmeros procedimentos para pessoas com deficiência, como por exemplo o tratamento com o Ácido Zoledrônico e as Hastes Telescópicas, foram obtidos via Justiça. Na última quarta (8), porém, isso mudou. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que o rol passa a ser taxativo. Em outras palavras, a lista é determinante para as operadoras de planos de saúde cobrirem ou não os procedimentos. Se não estiver na lista, elas não são obrigadas.
A decisão do STJ é extremamente grave. Irá causar a morte e a significativa queda de qualidade de vida de cerca de 50 milhões de pessoas em todo o país. Seis ministros – Luis Felipe Salomão, Villas Bôas Cueva, Raul Araújo, Marco Buzzi, Marco Aurélio Bellizze e Isabel Gallotti – aceitaram a tese das operadoras de que o rol taxativo “vai facilitar o estabelecimento de valores mais acessíveis” e jogaram essas 50 milhões de pessoas ao “salve-se quem puder”. Contribuíram para a transformação da vida dos brasileiros em meras cifras para empresas particulares que só se interessam em lucrar e lucrar cada vez mais. Washington Fonseca, especialista em Direito Médico, Mestre em Direito pela PUC/SP e sócio do Fonseca Moreti Ito Stefano Advogados, avalia que o julgamento foi “absolutamente lamentável”. Segundo ele, os clientes serão os maiores prejudicados. “Os planos de saúde foram as empresas que mais lucraram na pandemia, principalmente no ano de 2020. Agora, pelo fato de existir a pontualidade nos atendimentos, os planos vão ficar muito mais à vontade e terão a legitimidade de negar tratamentos necessários. Acredito que, com o passar do tempo, essa decisão vai mudar, mas, infelizmente, de maneira imediata, ela vai ser aplicada, aumentando a judicialização”.
Enquanto as operadoras esfregam as mãos projetando a fortuna que vão amealhar, as famílias de pessoas com deficiência, pacientes com câncer, idosos e tantos outros se desesperam sem saber como continuarão o tratamento de seus entes queridos. Fátima Benicazza, presidenta da Associação Nacional de Osteogênese Imperfeita (ANOI), lembra que a principal medicação para os pacientes da OI, o Pamidronato Dissódico, passou a ser fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 2001 e que agora não se sabe se vai continuar. O Pamidronato é um medicamento caro, custando entre R$ 600 e R$ 1.000 a dose (leia mais aqui e aqui). O paciente toma cerca de três doses por ano. Além dele, ela cita o Ácido Zoledrônico e as Hastes Telescópicas, igualmente, importantes na qualidade de vida dos pacientes com Osteogênese. Todos os tratamentos são bastante onerosos. Assim como os tratamentos para o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Kassiane Costa, autista, mãe de autista e idealizadora do Autismo com Leveza (@autismocomleveza), fala que o rol da ANS prevê psicólogo para autistas, mas não cita a especificação de formação em terapia ABA (Applied Behavior Analysis – Análise do Comportamento Aplicado), muito importante para esse público. “O plano vai disponibilizar psicólogo com formação geral, mas não necessariamente que tenha formação em ABA”, afirma.
Suas excelências fecharam os olhos para diversos outros argumentos contrários a este crime. A conselheira nacional de Saúde e coordenadora-adjunta da Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar (Ciss) do CNS, Shirley Morales, por exemplo, explica que a mudança para o rol taxativo limita os benefícios e inviabiliza atendimentos. “Isso significa que, se surgirem doenças novas como a Covid, ou doenças raras, vários procedimentos vão acabar sendo negados porque não estarão no rol obrigatório. A lista de procedimentos é apenas um exemplo, na verdade os beneficiários têm direito à integralidade de benefícios, tendo em vista a questão da defesa da vida e da saúde de uma forma integral”, destaca. Segundo ela, a saída dos pacientes será migrar para o SUS, que já está sobrecarregado. O Instituto Lagarta Vira Pupa foi uma das muitas entidades que assumiram a linha de frente do combate a essa decisão. A jornalista Andréa Werner, mãe de um garoto autista e fundadora do Instituto, disse que, com a decisão do STJ, planos de saúde já trabalham para derrubar decisões que antes eram favoráveis à cobertura de procedimentos não previstos no rol da ANS. Segundo ela, a decisão do STJ “vai matar pessoas”. Andréa vai além: “se bobear, os planos vão cobrar ressarcimento das pessoas de tudo que já pagaram até agora. É uma tragédia gigante que se abateu neste país hoje e espero que todo mundo esteja bem ciente disso”.
Todo mundo mesmo porque o rol taxativo vai impactar na vida de um universo bem maior do que somente as pessoas com deficiência. A terapia ocupacional, de acordo com Kassiane, vai sofrer também. “No rol, não especifica formação em integração sensorial, mas essa formação é fundamental no tratamento de pessoas que tem transtorno do processamento sensorial”, disse. “Isso sem falar nos medicamentos de alto custo, para tratamentos por exemplo de Atrofia Muscular Espinhal (AME), doenças autoimunes, câncer, medicamentos mais de ponta, que trazem melhores respostas e não estão no rol da ANS. Portanto, o plano não vai ter obrigatoriedade de cobrir”, completa. O passo seguinte será levar a discussão para o Supremo Tribunal Federal (STF) e tentar convencer os ministros da Suprema Corte do efeito devastador dessa decisão e ainda lembrar dos princípios fundamentais da Constituição Federal. O Instituto Lagarta Vira Pupa, em Nota Pública, afirma que o rol taxativo é uma “distorção do modelo de sistema de saúde constitucionalmente posto, no qual a prestação de serviços de saúde por privados de forma suplementar ao Sistema Único, impõe a assunção dos riscos decorrentes do negócio. Não há, como querem as operadoras de saúde, espaço para um negócio livre de riscos e ônus”. A Nota continua, afirmando que não há no mundo sistema em que o risco do negócio seja integralmente do Estado, como uma espécie de seguro universal.
Interessante ressaltar que essa discussão surge no período pós-pandemia. Nesse intervalo de dois anos, o lucro líquido das operadoras de planos de saúde despencou de R$ 17,6 bilhões, em 2020, para R$ 2,6 bilhões, no ano passado, segundo dados divulgados pela ANS. Ao mesmo tempo, no mesmo período, as empresas tiveram um crescimento de receita na ordem de R$ 10 bilhões (saindo de R$ 229,9bi, em 2020, para R$ 239,9bi, em 2021). A queda abrupta da lucratividade está diretamente relacionada ao aumento do uso dos planos de saúde pelos clientes, no último ano, após um período de represamento de consultas, exames e procedimentos, inclusive cirúrgicos, durante o auge da pandemia em 2020. A população, amedrontada, pelo surto de Covid-19, adiou seus procedimentos e exames e voltou a fazê-los em 2021. O economista Carlos Ocké-Reis, da diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação e Infraestrutura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), defende, portanto, que a queda da lucratividade é sazonal e exemplifica com a análise do desempenho econômico das empresas líderes entre 2007 e 2019, mostrando que elas sempre tiveram um excelente resultado financeiro (leia mais aqui).
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