O Brasil em transe pariu o neofascismo
O êxtase profundo, a excitação desmesurada, a atribulação intensa, o desespero, o afastamento da realidade, são características definidoras do estado de transe. Trata-se de uma crise profunda causada por fatores internos ou externos, capazes de levar à perda da consciência, de produzir alucinações. Os movimentos sociais que se rebelaram contra o aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus de São Paulo, no ano de 2013, foram usados como mecanismos para acender ódios adormecidos no seio de parte da sociedade brasileira, o que nos trouxe ao comportamento alucinado que assistimos em segmentos populacionais de nossas pequenas e grandes cidades.
O país que passava por uma extraordinária mudança na trajetória de seu desenvolvimento, que havia retirado mais de 30 milhões de pessoas da pobreza, que ampliava a classe média, mergulhou numa crise política, que resultou em uma retração econômica até hoje não superada. Mas, é preciso deixar claro que não foi o aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus que conduziu muitos para formar o expressivo contingente de fascistas, que buscam aniquilar os divergentes de seu padrão moral; afastado de uma manipulação midiática, essa contestação de reajuste de preço, teria se esvaído no curto prazo, como sempre ocorre com movimentos desta natureza.
O agir alucinado, tresloucado, de muitos que passaram a exibir publicamente preconceito de cor, de religião, de sexo; a agredir mulheres e pobres, foi cultuado em simultaneidade ao movimento socioeconômico que transformava a estrutura de classes sociais, desde sempre marcada por uma exponencial distância econômica, educacional e cultural. Característica de uma sociedade fundada na escravidão, primeiro dos nativos, depois de africanos, que manteve sua mentalidade escravocrata normalizada na convivência com parte significativa de sua população, em média de 30 a 50%, sobrevivendo na pobreza extrema, na miséria.
A governança petista que implantou uma ordem econômica e social alinhada aos preceitos constitucionais, portanto, pautada no combate à pobreza e à redução da desigualdade regional, que desenvolveu, em larga escala, políticas públicas de assistência e de inclusão social, foi combatida pela grande mídia a partir da divulgação, com base em fatos, evidências e, também, meras especulações de corrupção que alcançavam membros dos partidos da base aliada. Roberto Jeferson, presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), apareceu como expoente do “mensalão”, mas salientava-se a legenda do Partido dos Trabalhadores (PT) como responsável absoluta.
Na conjunção destes dois eventos, foi-se construindo uma imagem demonizada da tendência política de esquerda. O movimento de 2013, que emergiu na revolta contra o aumento da passagem de ônibus e evoluiu para a reivindicação da qualidade dos serviços prestados pelo estado no padrão FIFA, referência aos estádios construídos para o campeonato mundial de futebol, foi midiaticamente trabalhado para impingir a imagem de incompetência no petismo; já o “mensalão” funcionou para ferrá-lo como corrupto. Daí a mídia comercial associada aos interesses do ideal neoliberalista fomentou a criação de jargões difamatórios, facilmente inculcados nas mentes e mecanicamente reproduzidos, como “petralhas” e “esquerdopatas”.
Assim, estigmatizou-se um segmento da sociedade, a tendência política de centro-esquerda e de esquerda, como detentora de moral duvidosa e doente, esculpiu-se o inimigo público a ser eliminado da vida pública, do campo político, alguns levantaram a necessidade inclusive de cassação da legenda do Partido dos Trabalhadores. Entretanto, os interessados na criação destes estigmas, com o objetivo de identificar o inimigo político, não calcularam que, em vez do fortalecimento da direita, como força política distinguida pela maioria para liderar politicamente o país, emergiria de forma tão imperiosa a direita radical, de feição fascista.
Entre nós, o fascismo sempre esteva à espreita do poder. Nos anos 1930, sob a liderança nacional de Plínio Salgado, estruturou-se fortemente no Ceará, São Paulo e Paraná, ocupou cargos em executivos municipais e elegeu parlamentares. O líder fascista concorreu à Presidência da República, com 8,28% dos votos, no pleito de 1955. Aos preconceituosos que destilavam ódio contra pobres e pretos, que se manifestaram de forma organizada politicamente na primeira metade do século XX, agregaram-se os fascistas, que nas décadas seguintes, destilavam seu ódio ateando fogo em mendigos e agredindo nordestinos, e juntaram-se os fascistas, que no século XXI, encontraram um personagem – um tipo capitão do mato – capaz de encarnar tudo aquilo que lhes causa aversão, como a ascensão da mulher, do movimento LGBTQIA+ e toda sorte de minorias.
Religiosos, pseudocristãos, numa luta insana contra mudanças em curso que fatalmente destruirão o patriarcalismo e toda sua influência da definição hierárquica das estruturas sociais, principalmente da família, em nome de um conservadorismo moral conduziram – e ainda conduzem – seus seguidores a enxergarem o passado como divinizado e os novos comportamentos como amaldiçoados. Ao inferno, à escuridão, estão condenados todos os que se relacionam afetivamente fora do espectro da heterossexualidade monogâmica. Transformaram a intolerância em ato religioso, a violência aceitável, pois a ação em defesa de princípios religiosos seria abençoada.
Ao se estigmatizar e demonizar a tendência política de esquerda, simultaneamente, distinguiu-se como amoral também a luta pelos direitos humanos, equidade e inclusão social de todas as minorias. Tudo e todos os que são identificados com estes valores tornaram-se os “judeus” a ser varridos das vistas da massa de alucinados seduzidos pelo modus operandi fascista, que não diverge, não discorda, mas elimina, executa, mata.
* Clésio Arruda é doutor e mestre em sociologia, especialista em geografia humana e graduado em ciências econômicas; professor titular da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e professor da graduação e do mestrado em direito do Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS).
Sem nenhum comentário