Cerimônia de abertura é um espetáculo de exclusão e a TV acha lindo
Logo nos primeiros minutos da cerimônia de abertura da Copa, o comentarista Roger Flores declarou, emocionado, que foi muito feliz no Qatar quando jogou por lá. Que foi muito bem tratado. Foi muito ajudado em tudo.
Roger morou no Qatar em 2008 e agora, ao voltar, está abismado com a modernidade do país e com as construções.
Nenhuma menção a operários mortos para que as construções fossem erguidas. Nenhuma menção à falta de direitos humanos. Nenhuma menção ao fato de que se não fosse um imigrante homem branco rico e heterossexual esse tratamento solidário não teria sido a ele conferido.
Quem assistiu à abertura da Copa pela Globo teve a impressão que a Copa estará sendo jogada num paraíso terrestre.
Luis Roberto até falou que esperamos um mundo mais solidário e inclusivo, colocando as exclusões que são defendidas por leis no Qatar entre vírgulas e com bastante passadas de pano, e foi isso.
Depois, como quer a Globo, o futebol seguiu sendo 100% entretenimento e 0% jornalismo.
E a crítica aqui é mais à emissora do que aos profissionais que, mesmo se quisessem ser críticos, não encontrariam respaldo, incentivo, aplausos – muito pelo contrário. A Globo detesta misturar política e futebol, como sabemos.
O Emir é adorado aqui no Qatar, disse Roger quase emocionado vendo o Emir entrar e ser aplaudido. Sabe-se lá o que acontece com quem não aplaudir efusivamente o ditador, mas isso não foi dito nem por Roger nem por ninguém obviamente.
Nas imagens, homens; muitos e muitos homens.
Luis Roberto tentou emocionar falando que estávamos vendo uma cerimônia de congraçamento. Congraçamento do quê? De muitos homens e nada mais.
A diversidade era ver homens de túnica, de terno ou de camiseta.
Poderíamos ter nos comentários da TV um mulher, até para dar uma equilibrada mínima, mas os escalados foram Caio Ribeiro e Roger Flores.
A inconfundível voz de Morgan Freeman, que já interpretou Deus no cinema, leu um texto que falava em igualdade e justiça. Um enorme papo furado se a gente olhasse em volta e notasse o que é o Qatar e quem estava presente à cerimônia.
“Estamos no magnífico estádio Al Bayt”, disse Luis Roberto sem avisar que o estádio é um projeto do filho do arquiteto de Hitler.
A empresa AS+P é alemã e foi fundada por Albert Speer, filho de outro Albert Speer, ministro das armas e arquiteto do período Nazista alemão.
Luis Roberto ainda falou na transmissão que há povos conquistadores e há povos nômades e estavam todos ali representados.
Por conquistadores a gente deve entender colonizadores e imediatamente anexar à informação todos os pavores dos processos de colonização.
Isso, claro, não foi dito.
O narrador da Globo seguiu falando da beleza da inclusão contida nos discursos.
Nas imagens, não havia inclusão. Havia, isso sim, uma batalha feroz entre o que era dito e o que era visto.
Não sou ingênua a ponto de achar que a emissora que tem os direitos de transmissão iria gongar a Copa já na abertura.
Ou que irá tecer pesadas críticas ao longo do período.
Mas, temos que constatar que até a Al Jazeera, rede de comunicação de língua árabe com sede no Qatar, está fazendo uma cobertura mais crítica.
Hoje, em seu portal, um dos destaque era um texto bastante crítico que dizia: O Capitalismo não vai matar o futebol.
É uma pena que a transmissão da Globo seja tão simpática aos horrores do Qatar.
Poderíamos buscar uma forma de encaixar educadas críticas em nome da construção de um mundo melhor. Seria bacana ver isso acontecer um dia.
* Texto da jornalista Milly Lacombe, do Portal UOL, aqui.
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