Camuflagem social visa a esconder o autismo
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por desenvolvimento atípico, manifestações comportamentais, déficits na comunicação e na interação social, padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados, podendo apresentar um repertório restrito de interesses e atividades. Os primeiros sinais podem ser notados em bebês, nos primeiros meses de vida. No geral, uma criança com TEA pode apresentar os seguintes sinais: dificuldade para interagir socialmente, como manter o contato visual, identificar expressões faciais e compreender gestos comunicativos, expressar as próprias emoções e fazer amigos; dificuldade na comunicação, caracterizado por uso repetitivo da linguagem e dificuldade para iniciar e manter um diálogo; e alterações comportamentais, como manias, apego excessivo a rotinas, ações repetitivas, interesse intenso em coisas específicas e dificuldade de imaginação. O autismo é dividido em três níveis. O de suporte 1, ou leve, requer bem pouco apoio no dia a dia; o nível 2 seria o autismo moderado e já requer um pouco mais de apoio na rotina diária; já o nível 3 é o autismo severo e o que mais exige apoio para as atividades cotidianas da pessoa. O autismo não é uma doença e, portanto, não tem cura. Mas, existem abordagens para melhorar a vida das pessoas com o Transtorno. Uma dessas abordagens, embora controversa, é a camuflagem social.
O site Genial Care, especializado em autismo, explica que a camuflagem social, também conhecida como masking (mascaramento), é o conjunto de estratégias que visam a “esconder” alguns comportamentos típicos do autismo, como os já mencionados dificuldade em fazer contato visual e comportamentos repetitivos (estereotipias ou stims). O principal objetivo é fazer com que o indivíduo se adapte melhor ao ambiente e atenda às expectativas em diversos contextos sociais. “Quando falamos em camuflagem social, também falamos de táticas usadas por profissionais que envolvem desde gestos e entonações da voz até a modulação de assuntos para uma conversa”, diz a matéria. Em outras palavras, é um treino para fazer com que pessoas autistas se pareçam mais com pessoas neurotípicas (sem autismo). Algumas maneiras de se fazer este treino são: por Compensação, copiando comportamentos e falas, criando um roteiro de uma possível interação social; Mascaramento, monitorando as próprias expressões corporais e faciais, com o objetivo de não demonstrar que a interação social está exigindo um esforço desgastante para a pessoa; e Assimilação, atuação em determinado contexto social, por meio de estratégias, comportamentos e até mesmo de outras pessoas, para passar a impressão de que a interação social está sendo realizada.
Todo este esforço para esconder a condição autista é o ponto controverso em torno da camuflagem social. A jornalista cearense Helaine Oliveira, mãe do pequeno João, de 10 anos, afirma que ela e o marido, o também jornalista Roberto Leite, nunca utilizaram esta estratégia com o filho. “A gente nunca precisou camuflar nada do João porque eu acho que isso mais atrapalha do que ajuda, sabe? Não tem porque a gente camuflar algo que faz parte de quem ele é. A gente vai estar negando a essência dele”, afirma. A mesma preocupação tem Renata Fernandes, mãe de George, de nove anos. Ela admite que sequer sabia do que se tratava a camuflagem social e precisou estudar antes de responder. Depois de ler sobre o assunto, entendeu que não se aplicava ao filho porque “George sabe que é autista, mas não tem a consciência de que precisaria se camuflar e se transformar em outra pessoa”. Além disso, ela afirma que a camuflagem social é mais utilizada para mulheres do que para homens. De fato, estudos mostram que o comportamento de camuflagem do autismo é muito mais frequente nas meninas e mulheres do que nos meninos e homens. As razões ainda não são claras, mas existem algumas possibilidades que certamente chamam a atenção. Dentre elas, o fato de que as mulheres são condicionadas a serem “agradáveis e sociáveis” desde muito cedo.
A professora do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ana Amélia Cardoso, explica que a camuflagem do autismo é mais comum nas mulheres, que “as meninas são criadas para atender às expectativas sociais”. Embora homens também utilizem a estratégia, “as mulheres tendem a ter maior habilidade na percepção e no uso dessas estratégias”, na avaliação da professora. A neuropsiquiatra Raquel Del Monde ressalta que “mulheres costumam ser mais ágeis e eficazes na apreensão de habilidades sociais por meio da cópia, por questões neurológicas ou por maior cobrança de socialização”. Mayra Gaiato, psicóloga especializada em autismo infantil, segue a mesma linha de raciocínio. Ela explica em seu canal do Youtube, Mayra Gaiato | Autismo e Desenvolvimento Infantil, que “as meninas têm mais habilidade de comunicação e imitação, de perceber o meio e tentar se enquadrar do que os meninos”. Dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC – Centro de Controle e Prevenção de Doenças, em tradução livre), nos Estados Unidos, divulgados em dezembro de 2021, apontam que 1 mulher a cada 4,2 homens está no espectro autista. Mayra aponta ainda que as meninas teriam “menos estereotipias”. Porém, tanto a questão da proporção quanto das estereotipias carecem de mais comprovação. O que se tem é uma avaliação do papel social das mulheres e de possíveis subnotificações. Mayra lembra que a sociedade espera das mulheres de um modo geral certos comportamentos e atitudes, como serem mais discretas, mais caladas, mais tímidas, o que faz com que os sintomas clássicos do autismo não sejam tão evidentes nelas.
Como a camuflagem é feita? Existem muitas possibilidades quando o assunto é camuflar o autismo. Saber como essa camuflagem acontece é importante para ficar atento a esses sinais e procurar ajuda, quando necessário. Para camuflar a dificuldade em fazer contato visual, por exemplo, alguns autistas desenvolvem truques, como olhar para o ponto que fica entre os olhos da outra pessoa, ou para suas sobrancelhas. Isso se torna cada vez mais desgastante, pois a interação social é algo que se faz todos os dias e em todos os momentos. Balançar o corpo para frente e para trás, sacudir as mãos ou ficar batendo com os pés no chão são alguns exemplos de estereotipias. Existem diversas razões para esse tipo de comportamento, sendo o principal deles a autorregulação. Desde que esse comportamento não seja prejudicial para a integridade física da pessoa autista, não existe razão nenhuma para que ela precise suprimir esses movimentos ou não deveria existir. Contudo, muitos autistas se tornam alvos de piadas e bullying. Para extravasar a energia contida, autistas costumam desenvolver outros comportamentos, como rabiscar uma folha, manipular um objeto nas mãos, batucar sobre a mesa de forma rítmica ou balançar as pernas discretamente embaixo da mesa.
Vale ressaltar que a camuflagem social não é uma exclusividade das pessoas com autismo. Viver em sociedade é um exercício diário de acomodações e adaptações. O ser humano está em uma busca constante para ser aceito e amado pelos demais. Martha Moreira, psicóloga e especialista em Saúde Mental do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) do Rio de Janeiro, em artigo escrito para Sem Barreiras, cita o exercício da roupa que melhor nos veste. Para ela, “a camuflagem social é equivalente a encontrar a roupa que melhor nos veste para nos apresentarmos publicamente, adequando o que é nosso e o que o ambiente nos exige”. Isso nos levar a fazer escolhas. Por exemplo, se vamos a uma reunião de trabalho, “não cabe” usarmos bermuda, camiseta e chinelo de dedo, muito menos termos chulos, coloquiais e cheios de gírias. Da mesma forma, não se deve ir à praia de paletó e gravata ou vestidos longos e salto alto. Em ambas as situações, corre-se o risco de ser taxado de estranho, esquisito e inadequado. O rótulo de esquisito ou inadequado é algo que não interessa a ninguém.
Sob este aspecto, o ser humano se aproxima dos camaleões, répteis que têm como característica principal mudar de cor para buscar sobrevivência dos outros animais. A camuflagem social seria uma maneira do ser humano “sobreviver” na grande selva da vida, assumindo diferentes personas, buscando sempre a faceta “certa” para determinadas situações. As mulheres, voltando ao ponto do autismo, têm muito mais familiaridade com esse exercício por conta das muitas exigências que lhes são feitas. “Não sente de pernas abertas”, “é feio falar palavrão”, “não durma com o rapaz na primeira noite”, “não fale alto”, etc são alguns exemplos dos dogmas sociais a que elas são submetidas.
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