Mineiras criam 1ª ferramenta para contratação de pessoas com deficiência
As mineiras Emmanuelle Fernandes, 34 anos, psicóloga com atuação nos departamentos de RH de multinacionais, e Patrícia Cardoso, 35, especialista em capacitação e acessibilidade inclusiva, sabem o quanto a contratação de pessoas com deficiência é desafiadora no Brasil. Para se ter uma ideia do cenário, uma pesquisa feita pela InfoJobs com mais de 630 respondentes, sendo 84,9% PCDs, mostra que 44% já sofreram algum tipo de preconceito durante o processo seletivo e 51% acreditam que a deficiência dificulta na busca do emprego.
Para 88,9% dos entrevistados, os avanços tecnológicos podem auxiliar no recrutamento mais inclusivo. De olho nesses dados, as empreendedoras fundaram em 2018 a Avulta, startup de contratação inclusiva, que cresce 30% ao mês e foi reconhecida recentemente no ranking 100 Startups to Watch como uma das referências no setor de RH.
A empresa desenvolveu a ANA (Avaliação Neuropsicológica Avulta), primeira ferramenta científica para contratação de PCDs no Brasil, desenvolvida em duas versões. Há a ANA Habilidades Cognitivas, que teve seu protótipo aplicado em pessoas com deficiência visual, auditiva e intelectual e começará a ser usada pela Cia de Talentos em dezembro; e a ANA Funções Executivas, que é complementar à original e foi co-criada com a Cia de Talentos. A ferramenta já está no mercado e foi aplicada em 30 mil pessoas que participam dos processos seletivos de companhias como a Vale.
A ideia da empresa é ir além da inclusão apenas pelo cumprimento de cotas e do assistencialismo. Segundo as empreendedoras, isso é muito comum e pode resultar em más contratações. “Os indivíduos são mal avaliados e, muitas vezes, ocupam posições que não aproveitam a totalidade da sua capacidade e experiência”, explica Emmanuelle. Segundo ela, o objetivo da Avulta é alocar cada uma na posição que melhor utilize suas competências, proporcionando crescimento.
O game, principal produto da empresa, leva em conta o conjunto de habilidades cognitivas das pessoas e a melhor maneira que elas podem contribuir com uma empresa, em vagas estratégicas. Tudo baseado em pesquisas e dados, e ouvindo as pessoas com deficiência. “Temos parceiros com todos os tipos de deficiências, visual, auditiva, física e intelectual, e as etapas do desenvolvimento de nossos produtos passam pela avaliação e participação deles”, ressalta Emmanuelle. “Não tem como não envolvê-los. Eles, inclusive, usam uma frase que resume tudo: ‘nada por nós sem nós'”, completa Patrícia.
Gap do mercado levou ao empreendedorismo
“Eu não tinha o intuito de empreender, mas ao atuar mais de 15 anos em recursos humanos me deparei com a questão da inclusão e a falta de ferramentas que ajudassem, de fato, na contratação de pessoas com deficiência. Na maior parte das vezes, o processo era feito de forma equivocada”, diz Emmanuelle.
Ao buscar ferramentas no mercado, ela percebeu que não havia nada completo e realmente eficiente, e resolveu estruturar um negócio. Como não tinha muita experiência em empreendedorismo, chegou a ter uma consultoria antes da Avulta, mas quebrou. “Foi a primeira frustração. Mas, com isso, percebi que devia buscar recursos para estruturar a empresa, sair da caixinha e trazer inovação ao negócio”, conta.
Nesse caminho, conheceu Patrícia, que virou sua sócia. “Ela já trabalhava no desenvolvimento de uma ferramenta de inclusão e tinha uma visão muito parecida com a minha sobre os gaps desse tipo de contratação: de sair da questão das cotas e do assistencialismo para, de fato, incluir, e focar nas competências de cada um”, diz.
Segundo ela, ao escolher um sócio, o propósito em comum é crucial para dar certo, além da complementaridade de perfis. “Sou mais sonhadora e criativa; já a Paty é mais objetiva e prática. Acho que se não fosse ela, ainda estaria sonhando”, brinca.
Por meio de contatos e por participarem de movimentos de inovação, como a FCJ Venture Builder, chegaram à FHE Ventures, uma corporate venture builder cujo objetivo é desenvolver soluções inovadoras voltadas ou adaptadas para as áreas de saúde e educação, da qual a FCJ faz parte.
A corporate estava oferecendo um pitch day, encontro para que empreendedores apresentem suas ideias em busca de investimento. “A empresa acreditou no negócio e conseguimos o apoio, que inclui toda a estruturação — da parte tecnológica à de marketing e jurídica”, diz. Segundo ela, a apresentação foi tranquila e baseada em dados, como o número de pessoas com deficiência no Brasil, a inexistência de ferramenta de seleção acessíveis, e o embasamento científico da solução.
Ninguém solta a mão de ninguém
Ao longo do processo de criação da empresa, no entanto, as empreendedoras passaram por situações difíceis, como é comum no mundo dos negócios. “A tecnologia sempre foi um desafio; por isso, muitos programadores passaram pela Avulta. O primeiro fornecedor, por exemplo, resolveu entrar na justiça alegando que tinha direito sobre a propriedade intelectual da ferramenta. Foi um momento de muito estresse, mas tínhamos tudo documentado e o processo não foi para frente”, lembra.
Mas, desistir nunca esteve nos planos da dupla. “Esse momento foi bem conturbado. Às vezes dá vontade de chutar o balde, mas nosso propósito e a nossa vontade de fazer diferente e impactar vidas são maiores do que qualquer percalço e desistir nunca foi uma possibilidade”, diz Patrícia.
Depois desse episódio, elas ficaram ainda mais atentas a todos os processos, sempre tendo documentos e contratos formalizados com todos os pilares do serviço, direitos e deveres de cada parte, e um cuidado especial na pesquisa e conversa com os parceiros. Além disso, passaram a trabalhar ainda mais em sintonia, respeitando o momento de cada uma: “Aprendemos a sempre segurar a mão uma da outra e seguir juntas, independentemente dos desafios. Temos um objetivo em comum e, hoje, a empresa é maior do que a gente e impacta muitas vidas”, diz Patrícia.
No dia a dia, elas fazem questão, também, de sempre estar alinhadas —entre elas e com os parceiros e a equipe. “Nossa comunicação é muito transparente e nos reunimos toda semana para os chamados sprints, conjunto de tarefas que devem ser executadas e desenvolvidas em um período pré-definido de tempo. Sabemos onde estamos, para onde vamos e o que precisamos para isso”, completa Emmanuelle.
* Texto de Caroline Marino, em colaboração para Universa, do UOL
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