Novela provoca discussão sobre vida amorosa de autistas
A novela Amor à Vida, da Rede Globo de Televisão, encerrada no último dia 31 de janeiro, suscitou um debate nacional em torno da personagem autista Linda, interpretada pela atriz Bruna Linzmeyer. O site oficial da novela a descreve como “uma menina especial, sensível, carinhosa e afetuosa, cuja vida muda ao conhecer Rafael, que a fez se transformar numa grande artista”. A descrição não diz que ela é portadora de autismo e esse é um dos pontos da enorme divergência de opiniões que envolveu mães de autistas, profissionais de saúde e os próprios atores. A divergência também se dá no tocante ao namoro, se o autista tem ou não condições de sustentar um relacionamento amoroso com alguém sem a deficiência. Em um determinado momento da novela, a personagem inicia um namoro com o advogado Rafael, interpretado pelo ator Rainer Cadete. O rapaz chega a ser preso, acusado pela mãe de Linda de “abuso de incapaz” após o casal trocar um beijo, mas recebem o final feliz, casando-se no final da trama.
O médico Dráuzio Varella explica que o autismo “é um transtorno global do desenvolvimento marcado por três características fundamentais: inabilidade para interagir socialmente; dificuldade no domínio da linguagem para se comunicar ou lidar com jogos simbólicos; padrão de comportamento restritivo e repetitivo”. Ele continua: “O grau de comprometimento é de intensidade variável: vai desde quadros mais leves, como a Síndrome de Asperger (na qual não há comprometimento da fala e da inteligência), até formas graves em que o paciente se mostra incapaz de manter qualquer tipo de contato interpessoal e é portador de comportamento agressivo e retardo mental”. O médico afirma que os estudos mais atuais apontam para fatores biológicos e genéticos como causa do distúrbio.
Fátima Dourado, médica pediatra e psiquiatra da infância e da adolescência, além de Diretora Clínica da Casa da Esperança em Fortaleza e Diretora Técnica da Abraça (Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa com Autismo), afirma que não existem duas pessoas iguais com autismo. “Existem autistas casados e com filhos; autistas que namoram, mas que apresentam dificuldades para manter relacionamentos amorosos mais estáveis; pessoas com autismo que desejam muito namorar e não sabem como conseguir um parceiro e existem, ainda, aqueles que não demonstram nenhum interesse em ter uma relação que envolva sexualidade e partilha com ninguém”. Segundo ela, mãe de dois rapazes autistas, o que há em comum entre os variados tipos de autistas é a dificuldade de entender o que se passa na cabeça da outra pessoa, o que dificulta a manutenção de um relacionamento. “Por outro lado, autistas são sinceros, confiáveis, gostam de rotina, não traem e estas podem ser características muito apreciadas para quem procura um companheiro”, completa.
A psiquiatra Letícia Calmon Drummond Amorim, da AMA (Associação de Amigos do Autista), de São Paulo, é outra que não vê problema algum em pessoas com autismo se relacionarem afetivamente com pessoas sem a psicopatologia. “Isso acontece de maneira natural, como ocorre nas relações afetivas de qualquer um. E os portadores de quadros que não apresentam deficiência intelectual grave associada podem formar uma família e ter vida sexualmente ativa”, afirma. Marisa Fúria Silva, presidente da ABRA (Associação Brasileira de Autismo) e mãe de um homem autista de 36 anos, conta que há um caso na Suécia envolvendo o casamento entre autistas, mas admite que a situação é rara. “Na novela percebo que o rapaz (Rafael) está cuidando dela, proporcionando boas coisas, e por isso ela consegue interagir com ele, mas acho muito complexo falar de uma relação amorosa”, pondera.
A novela de Walcyr Carrasco jamais se definiu quanto ao grau do autismo de Linda, apesar de especialistas identificarem características de autismo grave na jovem. A psicóloga Ana Arantes, professora do curso de pós-graduação de Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), afirma que o envolvimento de Linda, “uma menina com sério comprometimento cognitivo e comunicativo, com um adulto mais velho, plenamente capaz, sem o consentimento da família, não deve acontecer”. Fátima Dourado, por sua vez, acredita que o acompanhamento da família varia de caso para caso. “Cada pessoa com autismo vai necessitar de um tipo de apoio diferente. Conheço casais, onde um dos dois tem autismo, que conseguem gerenciar suas próprias vidas. A maioria, no entanto, precisa de suporte e apoio. Apoio financeiro, suporte afetivo, infra-estrutura, etc”. Para a neuropsicóloga Joana Portolese, da entidade Autismo & Realidade, de São Paulo, o autista precisa saber antes o que esperar do sexo, como usar um preservativo, compreender como e por que o parceiro vai agir de determinada forma.
Em seu blog Divã de Einstein (acesse aqui), Ana Arantes escreveu que a personagem da novela não é autista. “Apesar do autor querer retratar um indivíduo com TEA (Transtorno do Espectro Autista), as características demonstradas pela Linda no desenvolvimento da personagem são confusas e muitas vezes jamais se enquadrariam nas características de pessoas com TEA”. A profissional critica também o tratamento psicológico de Linda, como foi mostrado na novela. “Dá vontade de chorar”, escreveu. Segundo ela, a personagem só teve três sessões terapêuticas e, “em nenhuma delas o que foi mostrado chega nem em sonho perto do que é realmente o tratamento adequado para autismo”. Fátima concorda: “a Linda era uma garota grave, que nunca recebeu tratamento e apresentou grande avanço apenas sendo amada e andando de esteira”, ironiza. O amor, segundo ela, opera milagres, mas não na velocidade apresentada na novela.
Ana Arantes argumenta que o desenvolvimento cognitivo, social e comunicativo da jovem “deu um salto imenso” com apenas três sessões. “Não é bem assim que acontece”. De acordo com ela, o tratamento do autismo é feito por diferentes profissionais: psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, neurologista, psiquiatra e outros. “E é um tratamento intensivo, todo dia, o dia inteiro, e envolve também os pais e os cuidadores da criança. Se iniciado precocemente, quando a criança é bem pequenininha, o desenvolvimento pode ser quase igual ao de uma criança típica em algumas áreas. Mas, quanto mais tarde o tratamento é iniciado, mais lento é o resultado”, complementa.
O psiquiatra Estevão Vadasz, criador do Protea (Programa de Transtornos do Espectro Autista), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, defende que a personagem não deveria se relacionar com um homem, por Linda ser considerada incapaz, a exemplo dos menores de dezesseis anos. “Para se envolver com uma pessoa legalmente capaz, o autista teria de passar por uma perícia judicial. Apenas depois de uma avaliação com especialistas, mostrando que ele tem discernimento e crítica, ele poderia estar com outra pessoa”, afirma Vadasz.
Fátima Dourado, no entanto, defende que o autista pode manter relacionamentos. “Pessoas com autismo não são anjos azuis, como alguns definem. Autistas são pessoas com deficiência. Pessoas com necessidades e desejos, inclusive sexuais, como todas as outras. E o amor, quando verdadeiro, faz bem a qualquer pessoa”. Segundo ela, alguns autistas têm dificuldades em expressar emoções e outros em não expressar. “Conheço rapazes que se interessam sexualmente por determinadas pessoas e dizem muito diretamente ‘eu quero transar com você’ e com isso, às vezes, assustam as parceiras”. Regras sociais, especialmente as não ditas, são confusas para eles, causando situações embaraçosas. “Muitos não entendem porque, às vezes, dizemos não querer algo que desejamos profundamente, mas não há maldade nisso, é algo inocente e até bonito”.
A doutora Carla Gikovate, neurologista e especialista em autismo, também acredita que a trama envolvendo Linda ficou confusa. “A personagem tem características de autismo severo, mas também de autismo leve”, considera. Para ela, o namoro de Linda com Rafael jamais existiria na vida real. “Não há chances de um rapaz normal se apaixonar por um autista moderado, como acredito ser o caso da Linda. Na vida real, o cara ia perceber e cair fora”, opina. Indagada se os pais de Linda tinham razão de manter Rafael longe da jovem, Carla brinca: “A denúncia não aconteceria porque essa situação (amorosa) também não aconteceria”. No entanto, para o caso da doutora Carla está errada, informação é primordial para o membro do casal que não apresenta o transtorno. “Ele precisa conhecer a fundo as características do autismo para suprir as necessidades do par e lidar com as principais dificuldades. Em alguns casos, acaba assumindo a função de cuidador, que antes era do pai ou da mãe”, segundo Joana Portolese. “Quem deseja trilhar o mesmo caminho que Rafael deve estar disposto, no mínimo, a decifrar as manifestações amorosas que recebe, já que palavras e alguns tipos de carinhos não costumam fazer parte do repertório de muitos autistas”, completa a neuropsicóloga.
Serviço:
Abraça – Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa com Autismo (https://www.autismonobrasil.com.br/)
ABRA – Associação Brasileira de Autismo (https://www.autismo.org.br/)
Casa da Esperança Fortaleza (https://autismobrasil.org/)
1 Comentário
Acho que a novela fantasiou muito.A inclusão é muito difícil e a adaptação de pessoas com qualquer deficiência de uma forma natural ainda é muito difícil. O preconceito mascarado ainda existe. Mas sinto falta de temas como esses serem abordados em novelas, pelo menos ficou um alerta .