A hipocrisia e falta de cidadania do brasileiro se desmascaram a cada dia
Este texto foi, originalmente, publicado em meu blog político De prosa pelo monitor (acesse aqui), em janeiro deste ano, a partir de uma matéria sobre a deputada estadual pelo Rio Grande do Sul, Manuela D’ávila (PCdoB-RS), ex-deputada federal, em que ela desabafava sobre críticas que teria recebido ao postar uma foto amamentando seu bebê em sua cama (foto de capa desta matéria). O bebê, a pequena Laura de apenas quatro meses à época, havia sido vacinada e estava bastante inquieta, chorando muito, e Manuela somente conseguiu acalmá-la, levando-a para sua cama e lhe dando o peito. O marido Duca Leindecker, ao ver a cena, sacou do celular e tirou uma fotografia, postando, em seguida, no seu perfil @leisdelaura, do Instagram, criado pela deputada para registrar momentos da filha. Duas atitudes absolutamente normais e corriqueiras, amamentação e postagem em redes sociais. Essa foto, no entanto, foi extremamente criticada, por estar “expondo o peito de uma deputada”. Manuela respondeu que aquele peito não pertencia à deputada, mas sim à mãe de Laura e, pelos seis primeiros meses de vida da filha, à própria Laura.
A capacidade das pessoas em se incomodar com o ato de amamentar não é novidade. A intolerância de um número inacreditável de homens e, pior, de mulheres com o ato da amamentação é um absurdo. Veem nisso um ato erótico e, portanto, proibido de ser realizado em público quando, na verdade, é o que há de mais puro e singelo na relação entre mãe e filho. A amamentação é recomendada por todas as organizações de saúde do mundo para ter início logo após o parto, para que se estabeleça o laço de afetividade, carinho e amor entre a fêmea e sua cria. Sim, fêmea. Nesse ponto, não é uma questão de homem e mulher, mas sim de fêmea. No reino animal, cabe às fêmeas a alimentação de seus filhotes e não vemos reações de inconformismo e histeria com uma cadela dando de mamar aos seus cachorrinhos ou uma gata aos seus gatinhos. No entanto, basta uma mulher tirar o seio para alimentar seu bebê faminto que já começam as reações em contrário. É um ato libidinoso, de desrespeito às “pessoas de bem”.
Sem Barreiras traz esse assunto para deixar claro nosso posicionamento contra essa hipocrisia e intolerância. Isso porque a intolerância tem se tornado um traço característico da sociedade brasileira. Por anos, dizia-se que o brasileiro era o povo mais receptivo e acolhedor. No entanto, isso vem mudando ou, em uma visão mais negativa, vem sendo desmascarado. Que povo acolhedor é esse que, durante o dia, ofende e rejeita os casais homoafetivos e, à noite, grupos mais radicais os emboscam em vielas escuras e os surram até a morte? Que povo receptivo é esse que denuncia como pornográfica uma foto de uma criança negra, abraçada a um boneco negro representativo do personagem Finn do filme Star Wars VII – O Despertar da Força, conseguindo que o facebook apagasse a foto da criança com seu brinquedo? Ou ainda que faz um jornalista famoso e experiente ir a uma emissora de televisão tecer comentários maldosos e preconceituosos contra a entrada de alunos das escolas públicas na Universidade? Que país acolhedor é esse que impede uma pessoa com cadeira de rodas de sair de casa, simplesmente porque não há calçadas em bom estado para a cadeira rodar, não há rampas em locais públicos, não há banheiros adaptados, não há pisos táteis para cegos ou sinais luminosos para surdos?
A hipocrisia do brasileiro pode ser explicada pela ausência do termo cidadania no dicionário da grande maioria. Cidadania não é apenas ir votar de quatro em quatro anos. Cidadania se faz todos os dias, no respeito às leis, às regras, aos direitos de todos. Cidadania é você respeitar as decisões e escolhas, sejam elas no campo político-partidário, no campo afetivo, na raça, na religião, no gênero e na condição física. Cidadania é entender que o meu direito acaba quando começa o do outro, é não estacionar em vagas preferenciais para pessoas com deficiência porque não há outra vazia perto da porta. Cidadania é não dirigir em cima das ciclofaixas porque você não concorda com a existência delas. Cidadania é você dar passagem no trânsito a idosos ou pessoas com dificuldade locomoção. É você ceder o acento a gestantes e velhos. Cidadania é você se enxergar como membro de uma sociedade e não como animal irracional, incapaz de reconhecer o direito do outro.
Infelizmente, os governos brasileiros, ao longo da história, sempre se omitiram na educação dos cidadãos. A imprensa, notadamente a televisão, também poderia colaborar, mas elas servem muito mais como propagandistas de uma cultura branca, elitista e do corpo perfeito. Quantas novelas possuem personagens com deficiência? Qual o papel dos negros nas telenovelas? É possível apontar alguma em que um negro foi protagonista, excetuando-se claro novelas sobre escravidão? A hipocrisia se dá também nas relação homoafetivas. Na novela Em Família (2014), as personagens Clara (Giovanna Antonelli) e Marina (Tainá Müller) viveram um romance lésbico, que causou o fim do casamento da primeira com o personagem de Reynaldo Gianecchini. O interessante é que esse romance durou boa parte da novela e a Rede Globo somente colocou um beijo das duas no último capítulo e, mesmo assim, quase um selinho. Na mesma novela, Luiza (Bruna Marquezine) viveu um tórrido romance com Laerte (Gabriel Braga Nunes), ex de sua mãe, e a emissora não sentiu nenhum constrangimento em mostrar cenas fortes do casal heterossexual.
A Rede Globo se defende, dizendo que a sociedade não aceitaria beijo gay por sua herança religiosa, principalmente católica. Mas, aceita infidelidade, traição, estupro, mentiras, roubos, desrespeito aos pais, vingança, assassinato? A condenação, portanto, é da sociedade ou da emissora preconceituosa e reacionária? Acredito que ambos. A reação negativa à amamentação em público é a mesma a um casal gay se beijando. Confesso que me senti constrangido ao estar em uma barraca de praia, dez anos atrás, e ter dois homens a minha frente se beijando. Não foi repulsa nem raiva, foi apenas constrangimento e um pouco de desconforto. Não condeno esses sentimentos. O que condeno é a tentativa de alguns em impor suas limitações sociais aos outros e tolher suas liberdades individuais. O mesmo direito que eu tenho de expressar meu amor e minha atração por uma mulher tem um homem em fazê-lo por outro homem ou uma mulher por outra mulher. Por que quero ter esse direito e não o dou aos demais?
Voltando ao caso de Manuela D’ávila, a deputada disse que sua filha chorava de dor e que mamar em sua cama foi a única forma de confortá-la. Em uma época de selfies, entende-se a atitude do marido de fotografar aquele momento. Estamos no século XXI e não podemos mais aceitar grosserias e intolerâncias como essas. A escritora e feminista Nathali Macedo, no blog Diário do Centro do Mundo (clique aqui), resumiu bem a questão: “Não importa se você é uma deputada, uma modelo, uma ativista, uma mãe: nossos peitos não dizem respeito a ninguém além de nós mesmas”. É isso mesmo. Os peitos da Manuela pertencem à Manuela. Os sentimentos homo ou heterossexuais pertencem a cada um de nós. Paremos de patrulhar a vida dos outros e nos preocupemos com a nossa. Paremos de querer impor nossas crenças e filosofias de vida para as demais pessoas porque, convenhamos, não somos evoluídos ou grandes o suficiente para tal.
* Este texto foi escrito por Victor Vasconcelos, editor e criador do blog Sem Barreiras, originalmente publicado em outro blog criado por mim – De prosa pela monitor (acesse aqui).
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