Tratamento a deficientes em instituições no Brasil é degradante
O Brasil tem uma legislação considerada avançada para garantir direitos das pessoas com deficiência. Mas a realidade é bem diferente da teoria.
Essa é uma das conclusões do relatório que a Human Rights Watch divulgou, no Rio de Janeiro, sobre as condições de vida e o tratamento de quem tem mobilidade e sentidos reduzidos ou sofre de distúrbios psicossociais, entre outras deficiências.
O documento alerta também para a ausência de apoio público e de fiscalização nas instituições que se propõem a cuidar e a abrigar estas pessoas.
Em praticamente todos os locais visitados e que deveriam acolher e ajudar os portadores de deficiência a se desenvolverem, pesquisadores encontraram condições degradantes, como adultos e crianças amarrados a camas e que passam o dia sem nenhum estímulo que os permita buscar uma vida com independência.
“Eles ficam até morrer”, afirmou diretor de abrigo, cuja frase deu nome ao relatório. Dezenove abrigos foram visitados no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Distrito Federal. O levantamento foi realizado entre novembro de 2016 e março de 2018.
Pesquisadores destacam o grande número de pessoas dividindo o mesmo espaço e a falta de roupas e bens pessoais de cada interno. Em alguns locais, até escova de dentes é compartilhada.
Internos dopados e camisa de força
O que mais surpreendeu a HRW foi o frequente uso de medicamentos sem prescrição terapêutica, apenas para “acalmar” internos mais agressivos, mantendo-os dopados.
Os relatos de pessoas que trabalham nestas instituições mostram um panorama sombrio para os internos que demonstrem qualquer tipo de reação fora da esperada. “Às vezes usamos camisa de força e colocamos as pessoas em um cômodo de isolamento para se acalmarem”, contou um funcionário de uma das instituições.
Não foi o único relato do tipo. “Às vezes, a gente amarra as pessoas com lençóis ou usamos camisa de força por cerca de 30 minutos até a medicação fazer efeito”, explicou uma enfermeira. Adultos com deficiência contavam com pouca ou nenhuma privacidade em pelo menos 12 das instituições visitadas. Em uma delas, cerca de 30 pessoas viviam em grandes alas ou quartos com camas colocadas lado a lado, sem cortinas ou qualquer outra forma de separação.
Falta de atividades
A falta de atividades ocupacionais foi outro problema encontrado. Os portadores de deficiência tinham pouca ou nenhuma ação relevante ao longo do dia. No caso das crianças, muitas não tinham contato humano regular nem frequentavam instituições de ensino, e as poucas que conseguiam eram instruídas de forma limitada e segregada.
Embora a lei brasileira determine que as crianças não podem permanecer internadas em instituições deste tipo por mais de 18 meses, salvo os casos em que há determinação judicial ou médica, muitas ocupam vagas neste tipo de local por muito mais tempo. De acordo com funcionários, muitos perderam o contato com os pais.
“O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Organização Mundial de Saúde e décadas de pesquisa em ciências sociais revelam que ambientes institucionais podem limitar o desenvolvimento físico, intelectual, emocional e social de crianças separadas das famílias e colocadas em instituições, devido a uma estimulação ou motivação inadequada, à falta de um envolvimento ou contribuição consistente de cuidadores, à falta de reabilitação, além de outras privações”, destaca um trecho do documento.
Dados imprecisos
Os dados sobre este tipo de instituição também são considerados falhos pelos pesquisadores da Human Rights Watch.
Usando como referência informações da Secretaria Nacional de Assistência Social, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Social, até 2016, no início da pesquisa, havia 5.078 crianças com deficiência vivendo em abrigos ou outras instituições de acolhimento.
A entidade considera que este número não representa a realidade, pois os dados são obtidos por meio de um questionário obtido pelas próprias instituições, sem uma checagem posterior ou uma supervisão por parte dos órgãos públicos.
De acordo com a mesma fonte, no mesmo período 5.037 adultos também viviam em clínicas ou outros locais destinados ao cuidado de deficientes.
Funcionários despreparados
Outro ponto ressaltado pelo documento da Human Rights Watch é a falta de preparo dos funcionários nas instituições analisadas.
“Diversos estudos de caso demonstram que a institucionalização de crianças, independentemente de suas condições materiais, é prejudicial ao seu desenvolvimento emocional, cognitivo, físico e social quando o cuidado prestado foca apenas nas necessidades básicas, sem uma relação individualizada”, afirma a entidade.
Os pesquisadores encontraram uma realidade de falta de profissionais, que fazia com que internos fossem deixados de lado em camas ou cadeiras na maior parte do dia.
Abusos e negligência
Além disso, muitas vezes eles não eram preparados para lidar com crianças e adultos portadores de deficiência, correndo o risco de agravar os quadros de saúde dos internos.
“Em várias instituições, a Human Rights Watch documentou abusos, incluindo maus-tratos, negligência, uso de restrições para controlar ou punir os residentes, sedação, bem como condições desumanas e degradantes. As condições e o tratamento foram particularmente abusivos nas instituições com número elevado de pessoas com necessidade de apoio intensivo”, esclarece.
Em uma das instituições visitadas, os internos usavam fraldas e sequer saíam das camas para ir ao banheiro. A mãe de um dos residentes afirmou aos investigadores que acreditava que alguns deles, incluindo o seu filho, poderiam usar o banheiro normalmente se possuíssem o apoio adequado.
A falta de equipamentos de mobilidade, que permitissem a circulação dos internos, chamou a atenção. Em Salvador, um jovem de 18 anos que possuía uma deficiência que comprometeu os músculos das pernas tinha dificuldade para sair do quarto que dividia com outra pessoa.
Circular pelos corredores era extremamente penoso, e ele não tinha uma cadeira de rodas. “Meu sonho é ver o mar, mas eu não tenho cadeira de rodas para ir e ver”, contou o jovem aos pesquisadores. A instituição onde ele vive fica a 200 metros da praia.
Em um dos locais visitados, os internos dormiam em colchões no chão. Outros não possuíam lençóis que forrassem a cama, contando apenas com um pedaço de pano para se cobrir.
“Funcionários de uma instituição disseram que as fraldas estavam em falta e contavam com apenas duas fraldas para adultos ou crianças por dia. Como resultado, alguns residentes tinham que permanecer com fraldas sujas por longos períodos”, destaca outro trecho do documento.
* Matéria de Cristina Boeckel, do Portal G1 Rio, de maio deste ano
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