A violência de Bolsonaro na extinção dos conselhos
No último dia 11 de abril de 2019, o presidente da República anunciou série de medidas alusivas aos seus primeiros cem dias de governo. A sucessão de hipocrisias e descalabros, que vão desde uma falsa humildade na substituição do uso dos pronomes de tratamento Vossa Excelência e Doutor por Senhor em documentos oficiais do Planalto, em nome de uma suposta aproximação do governo com a sociedade, quando se sabe que mais produtivo seria se gastos com os cartões corporativos do executivo não aumentassem como vêm aumentando, até o anúncio de uma política sobre drogas indubitavelmente ultrapassada e retrógrada para o país, são, por si só, temas para inúmeros textos. A presente reflexão, no entanto, tende a focar em apenas uma das medidas, por sinal, das maiores violências institucionais cometidas, desde o fim da ditadura, contra a participação direta da sociedade na formulação, elaboração e fiscalização de cumprimentos das políticas públicas do país, estipuladas pelo Decreto n. 9.759, de 11 de abril de 2019.
No documento, em uma só canetada executiva, extinguem-se conselhos, comitês e comissões de âmbito federal com presença significativa da sociedade civil em sua estrutura, citem-se apenas alguns que podem vir a ser afetados: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF); Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE); Conselho da Autoridade Central Administrativa Federal contra o Sequestro Internacional de Crianças; Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT); Conselho Superior do Cinema (CSC); Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI); Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC); Conselho das Cidades (CONCIDADES); Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP); Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (CONPDEC); Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CNPD); Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS); Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP); Conselho de Relações do Trabalho (CRT); Conselho de Representantes dos Brasileiros no Exterior (CRBE); Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (CONIT); Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD); Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI); Comissão Nacional da Biodiversidade (CONABIO); Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA); Comissão Nacional de Florestas (CONAFLOR); Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE); Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT); Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros (CADARA); Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI); Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI); Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO); Comissão Nacional dos Trabalhadores Rurais Empregados (CONATRE); Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH); Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua.
Entre os anos de 2011 e 2012, fui Coordenador Especial de Políticas Públicas dos Direitos Humanos do Governo do Ceará e tive a oportunidade de participar de algumas reuniões da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), agora, em tese, extinta. Foi uma das mais notáveis experiências da minha vida a integração em colegiado tão altivo, corajoso e proativo em prol da eliminação do trabalho escravo no Brasil. Daquela extraordinária experiência geramos, aqui no Estado, a Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo no Ceará (COETRAE/CE). Como Coordenador Especial de Direitos Humanos também participei ativamente da instituição do Conselho Estadual de Políticas para Pessoas em Situação de Rua (CEPOP), o qual eventualmente integrei, não mais como Coordenador Especial de Direitos Humanos, mas como Secretário Adjunto de Políticas sobre Drogas, entre os anos de 2015 e 2017. Nesta condição, também conduzi inúmeras mesas no Conselho Interinstitucional de Políticas sobre Drogas do Ceará (CIPOD). Além desses coletivos, prestigiei reuniões no Conselho Estadual de Saúde (CESAU), do Conselho Penitenciário do Ceará (COPEN) e do Conselho Estadual de Segurança Pública (CONSESP), dentre outros.
Em nenhum dos colegiados, nacionais ou estaduais, a participação dos membros era remunerada. Apesar disso, eram os melhores palcos de interface entre o poder público e a sociedade civil. Os debates, não raramente acalorados, refletiam desejo há anos represado da sociedade civil pela ação estatal no cumprimento de seus deveres constitucionais fundamentais. Por outro lado, apesar do contraditório, as discussões dificilmente não se revertiam em proposições e encaminhamentos aprovados por unanimidade, revelando que é através do debate entre os opostos que se brota o melhor da democracia.
Assim, com a extinção de conselhos como os supracitados (protestos e acionamentos judiciais à parte) só há a lamentar-se o desinteresse presidencial na participação da sociedade na elaboração e monitoramento das políticas que, ao final, lhe dirão respeito diretamente, para não falar do desrespeito com as gestões anteriores (não apenas do PT) que, passo a passo, foram moldando uma forma coletiva, mais transparente e democrática de fazer política no Estado brasileiro. Pior ainda quando a drástica medida se dá de supetão, da noite para o dia, em canetada à moda imperial, para variar, sem escuta da sociedade civil.
A propósito, para quem fez de bandeiras eleitorais o “fim da corrupção” e a “valorização de pessoas com deficiência” (neste último caso apelando para o fato da esposa falar em Libras), a extinção de colegiados como o Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC) e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) caminham na contramão explícita do que foi prometido ao povo brasileiro. Cem dias de governo, portanto, foram suficientes para o atual presidente demonstrar que já esqueceu os juramentos que fez no ano passado. Leia mais aqui e aqui.
* Texto de Marcelo Uchôa, advogado e professor de Direito no Ceará, publicado no Jornal GGN (acesse aqui)
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