Minha relação com uma doença rara
Hoje, dia 28 de fevereiro, celebra-se o Dia Mundial das Doenças Raras (assista ao BarreiraCast, o podcast do Sem Barreiras, sobre este tema, logo acima desta matéria). Ao final deste texto, escreverei um pouco sobre a data, mas, por enquanto, falarei da minha experiência de portador de uma doença rara, a Osteogênese Imperfeita. Tenho 44 anos e sempre soube da minha condição. Para deixar claro, sempre soube da minha deficiência e de qual era ela. A expressão ‘Doença Rara’ só me foi apresentada poucos anos atrás. Honestamente, possuir o rótulo de ‘raro’ não mudou em nada minha vida. Isso porque o rótulo Osteogênese Imperfeita já era extremamente forte em mim. Essa é uma primeira característica de ser ter uma doença rara: ela está conosco todos os dias, todas as horas e todos os minutos da nossa vida. Não há descanso, não há férias, não há pausa. Não é como um par de óculos ou uma prótese auditiva, que eu também utilizo, que você pode colocar na mesa por um tempo e “descansar” delas. Antes de ir dormir, eu retiro ambos e só volto a usá-los na manhã seguinte. Com uma doença rara, não é possível fazer o mesmo. Dormimos, acordamos, tomamos banho, comemos, bebemos, sempre com a sua companhia.
Minha doença rara é o resultado de uma má formação do colágeno, o tecido formador dos ossos. Ela é congênita, ou seja, nascemos com ela, não é algo que adquirimos no decorrer da vida. No meu caso, por exemplo, eu nunca conheci uma vida sem a Osteogênese. Como ela afeta a formação do colágeno, os ossos nascem extremamente frágeis e, portanto, quebradiços. Na intimidade, a OI também é conhecida como Doença dos Ossos de Vidro, exatamente, pela sua facilidade de quebrar. Um susto, uma pancada, um desequilíbrio e você pode ter uma fratura de braço, perna, clavícula. Somos, geralmente, pessoas pequenas porque nossos ossos longos não se desenvolvem normalmente e temos algumas imperfeições – um braço mais torto que o outro, as pernas arqueadas, escolioses, etc. Também podemos ter problemas pulmonares em decorrência da escoliose. Como nossa coluna é torta, ela não permite a expansão normal da caixa torácica. Alguns pacientes apresentam surdez em determinado momento da vida por problema no estribo, um dos ossinhos que formam o ouvido médio do ser humano. Eles podem ser frágeis, malformados ou estarem fixos, meio que grudados. Assim, não ocorre a vibração com a passagem do som para o ouvido interno.
Estes são os efeitos físicos de uma doença rara, a Osteogênese Imperfeita, no meu caso específico. Contudo, existem os efeitos emocionais e destes, eu só fui me dar conta próximo dos 40 anos. Uma pessoa com Osteogênese, em geral, vive com medo, medo de sofrer uma pancada, uma queda e, assim, fraturar. Um amigo com OI me relatou que ele tem medo, até mesmo, de morrer, pois uma queda pode resultar em uma fratura de crânio. Nunca havia pensado nisso, mas, certamente, é uma possibilidade. Esse medo constante me paralisou em diversas ocasiões. Minha profissão ficou estagnada em um dado período. Como eu tenho dificuldades em sair de casa, pela falta de transporte adequado, acompanhante e pelo medo de “enfrentar” as péssimas calçadas e/ou os prédios com batentes, sem elevadores ou rampas, preciso exercer meu trabalho de casa, pelo telefone ou internet. Além disso, questões bem interiores somente vieram à superfície depois que iniciei um acompanhamento terapêutico três anos atrás. Por décadas, imaginei a reação de estranhamento e preconceito das pessoas ao me verem na rua. A terapia me ajudou a entender que essa visão preconceituosa é, na verdade, minha.
A Osteogênese não tem cura, mas existem tratamentos que ajudam a aliviar as dores e fortalecer os músculos. Fisioterapia e natação são os principais, mas também há medicamentos. Quando era criança, frequentava vez ou outra clubes ou casas com piscina. Minha mãe “me armava” com boias nos braços e eu caía na água. Nunca foi um ambiente muito fácil ou confortável para mim. Eu ficava muito estático, sem velocidade para sair nadando, e aconteciam duas coisas: eu ficava com frio muito rápido, chegando a ficar todo roxo e tremendo, e era, constantemente, jogado para lá e para cá pelas ondas da piscina causadas pelo movimento dos demais nadadores. Para piorar, eu quebrei o braço certa vez e, desde então, já se vão três décadas, jamais entrei em uma piscina. Fisioterapia também esteve muito distante de mim por quase quarenta anos. Meus médicos nunca sugeriram exercícios físicos, ao contrário. Quando eu nasci, em 1977, desaconselharam, inclusive, que minha mãe me amamentasse. Somente aos 39 anos, comecei com uma fisioterapeuta e estou com ela até hoje. Neste particular, a desinformação da classe médica me prejudicou sobremaneira. Quanto aos medicamentos, o Pamidronato Dissódico, nunca tomei. Ele é recomendado até os 18 anos e, nos meus dezoito, ele ainda não existia. Poderia tomar, atualmente, o Alendronato, para maiores de 18 anos, mas, novamente, os médicos não me recomendaram.
Minha relação com a Osteogênese sempre foi difícil. Eu sempre a culpei por ter tirado de mim aquilo que eu sempre quis fazer – jogar futebol, dirigir, andar, ser grande. Sempre a culpei também pelas muitas dores que senti, especialmente, na infância e adolescência. A Osteogênese era vista como minha inimiga. Era porque aprendi a olhar para ela de forma mais amena. Sim, ela me causou dores e sofrimentos, me tirou prazeres que eu gostaria de ter tido, mas estou aprendendo que não ganho nada em manter esse antagonismo com ela. A Osteogênese também foi a responsável pela formação do meu caráter, da minha personalidade e da minha visão de mundo. Uma coisa, portanto, compensa a outra. E esta é uma lição que tenho aprendido: precisamos procurar, sempre, olhar o quadro completo e não tirar conclusões com apenas algumas partes. Ter uma doença rara é um desafio a cada dia, desafio de ter lidar com as incertezas do amanhã, com as dores, os sofrimentos, a revolta, a insatisfação, o descaso da sociedade, do governo. É fazer planos sabendo que eles podem ser alterados, rapidamente, por causa da nossa condição. Mas, ter uma doença rara também é uma oportunidade de sermos fortes e corajosos diante da vida. É saber que nada será fácil, mas não será impossível. Podemos viver com uma doença rara, podemos ser felizes, podemos espalhar alegria, podemos ter sonhos e realizá-los. Não somos coitadinhos nem vítimas de nada. Temos algumas barreiras a mais, mas somos capazes de superá-las.
DOENÇAS RARAS – O dia 29 de fevereiro é escolhido para simbolizar o Dia Mundial das Doenças Raras. Como só acontece em anos bissextos, o dia é transferido para 28 do mês nos demais anos, como agora em 2021. Criado em 2008, o Dia Mundial das Doenças Raras é um evento anual de conscientização, coordenado pela Organização Europeia de Doenças Raras (Eurordis, na sigla em inglês). A data é lembrada em setenta países, já que tais doenças atingem quase oito por cento da população mundial.
De acordo com a Eurordis, uma doença ou perturbação é considerada rara, nos países europeus, quando afeta menos de uma em cada duas mil pessoas. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera uma doença como rara aquela que atinge a relação de sessenta e cinco para cada cem mil habitantes, ou seja, o conceito ‘doença rara’ está ligado ao número de pessoas afetadas em relação à população em geral de um país ou continente. O número exato de doenças raras ainda é desconhecido, mas, são descritas de sete a oito mil enfermidades na literatura médica, de acordo com o blog Muitos Somos Raros. Oitenta porcento dessas doenças decorrem de fatores genéticos e os outros 20% estão distribuídas em causas ambientais, infecciosas e imunológicas. Aproximadamente, 75% das doenças raras, três quartos, portanto, afetam crianças.
No Brasil, a estimativa é de que existam treze milhões de pessoas com doenças raras. Levando em consideração que o Brasil possui 209 milhões de habitantes, seis porcento da população têm alguma doença rara, o equivalente à população da região metropolitana do rio de janeiro. Um número, portanto, bastante expressivo. Parte dessas enfermidades já conta com tratamento específico, mas a maioria dos medicamentos não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) e este é um dos grandes problemas do Brasil. A peregrinação dos pacientes em busca de tratamento e remédios é enorme.
Pesquisa realizada pela campanha ‘Crescer como iguais’ revela que o diagnóstico de uma doença rara demora anos. Isso ocorre porque não é incomum uma patologia rara ser confundida com outras que não são raras. Tentando melhorar esta situação, o Brasil criou, em 2014, a política unificada para pacientes de doenças raras. Esta política garante mais acesso a hospitais e centros especializados e maior cobertura no SUS. Contudo, a iniciativa não corrige a enorme dificuldade em conseguir acesso aos chamados remédios órfãos, os medicamentos para doenças raras. A solução acaba por ser entrar com uma ação judicial para obrigar o fornecimento desses medicamentos.
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