Mulheres com deficiência querem ser compreendidas

08/03/2021 Deficiência Física, Notícias 0
Mulher sorrindo em uma cadeira de rodas, de vestido florido, cabelos avermelhados. Atrás, vários jarros de plantas.

Fatine Oliveira é publicitária, blogueira e feminista com deficiência.

“Feminismo é a teoria a prática política pela emancipação de todas as mulheres”, diz uma citação da escritora, ativista, socialista, Sharon Smith, “qualquer coisa menos que isso é mera autoexaltação feminina”. Mas de que mulheres estamos falando? Mulheres negras, bissexuais, lésbicas, trans. Mas… muitas vezes a gente esquece de mencionar algumas mulheres: as mulheres com deficiência.

Neste Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência, conversamos com a Fatine Oliveira, publicitária, autora do Disbuga, colunista do Mídia Ninja, mestranda em Comunicação, integrante do Coletivo Feminista Helen Keller e além de tudo isso, um mulherão da p*##a. Falamos sobre sua pesquisa que se aprofunda na estética das pessoas com deficiência, capacitismo e os desafios que o feminismo – leia-se: nós, feministas sem deficiência – temos que enfrentar para construirmos um feminismo inclusivo.

Queria começar falando da sua pesquisa. Sobre o que é?
F: Estou pesquisando sobre a imagem de mulheres com deficiência no Instagram. Procuro investigar quais são suas motivações, suas percepções sobre corpo e como que o padrão normativo da mídia social as afeta. Estou estudando mais sobre a estética da deficiência.

O movimento feminista aborda bastante o tema de padrões estéticos. Como as mulheres com deficiência tem entrado nesse contexto?
F: Há um movimento realizado por mulheres com deficiência em construir imagens que valorizem suas diferenças corporais, suas cicatrizes, atrofias, má formações como uma maneira de ressignificar o conceito de beleza. São imagens de looks em cadeiras de rodas, ensaios sensuais ou artísticos acompanhados de relatos ou reflexões. Esse é um dos pontos que tenho investigado na pesquisa

Quais tipos de reflexões você tem encontrado na sua pesquisa?
F: A pesquisa ainda está em desenvolvimento, por isso muitos são os caminhos que surgirão até sua conclusão. No momento, tem sido interessante observar como que a deficiência é uma chave para questionamento de padrões estéticos. Um dos autores que tenho lido muito, o Tobin Siebers, defende que a arte moderna, por exemplo, só é considerada bela por aceitarmos a possibilidade de corpos disformes. Se podemos ter esse tipo de visão, porque não aceitar corpos com deficiência esteticamente perfeitos?

Os padrões estéticos afetam todas as mulheres. De que forma especificamente afeta as mulheres com deficiência?
F: Afetam diretamente sobre as diferenças no corpo, um corpo com deficiência é considerado um não-corpo. Um conjunto de significados negativos, medicalizados, mas nunca bonitos. É comum mulheres cadeirantes ouvirem “Tão linda e na cadeira de rodas” ou seja, há sempre algo faltando. Algo que uma maquiagem, dieta ou uma roupa bacana será incapaz de preencher. Porque ela não é mulher, não é ninguém.

Muitas vezes a questão estética é reduzida a algo frívolo, principalmente nas redes sociais. Você acredita que esse movimento vai além disso?
F: Como a mulher com deficiência não é vista como mulher. Então, muitas vezes ela precisa performar a feminilidade para conseguir ser vista como mulher. Então, o que muitas vezes para algumas pessoas é algo frívolo, como colocar uma roupa bacana ou fazer um vídeo de maquiagem, para mulher com deficiência aquilo é muito importante. Porque é a maneira que ela tem de se mostrar mulher, porque se ela não fazer isso ela não é ninguém.

Eu costumo dizer que a mulher com deficiência realiza etapas. Então, ela tem a primeira etapa de entender que é uma pessoa, que tem direitos, que é uma pessoa como qualquer outra. Aí vem a segunda etapa, se reconhecer como mulher, ver o que ela pode valorizar, se amar. Esse processo se dá por passar e vivenciar essas performances, para em um terceiro momento ela chegar em um grau de empoderamento – palavra que eu sei que está sendo muito usada, mas foi a única que pensei agora – para chegar e falar “não preciso de mais nada disso, sou mulher e isso já basta”. Então, o movimento que eu falo que as mulheres tem realizado é esse, é um processo. E algo que tem que estar muito claro para o movimento feminista é isto. A mulher com deficiência experiência um processo e muitas vezes é possível que essas mulheres sem deficiência possam ajudar, mostrar para essas mulheres que elas são lindas do jeito que são, com o corpo que tem.

Uma das coisas que eu tenho defendido na minha pesquisa é que muitas vezes esse compartilhamento de imagem já ajuda as mulheres nesse processo. Então, quando você está mexendo no Instagram e você uma mulher com o mesmo corpo que o seu e está vestindo roupas bacanas, se maquiando, tá experimentando uma vida bacana, você é tocado por aquilo. A pessoa com deficiência se vê, se identifica, ela pensa que “se ela pode, eu posso”. E isso vira uma rede, e vai levando essas possibilidades para cada uma. É claro que eu não estou colocando as redes sociais como a salvação de tudo, ela é uma parte de um grande sistema, porque temos a nossa sociedade, cultura, mas há uma força também nessas interações e é isso que eu busco aprofundar na pesquisa.

Qual foi a sua motivação em criar o Disbuga?
F: Eu já escrevia muito sobre deficiência no meu perfil pessoal, compartilhava um pouco da minha experiência. Alguns amigos começaram a falar que eu poderia fazer um blog sobre isso, mas eu sempre ficava em dúvida. Um belo dia eu estava assistindo os vídeos da Jout Jout, e pensei “ah, vou fazer um canal para falar sobre pessoas com deficiência”. E fui criar o canal. Pensei no nome “disbuga” porque eu não queria nada que associasse somente a um tipo de deficiência, queria algo que falasse sobre o preconceito de modo geral. A ideia do “digbuga” é considerar o preconceito como um bug e, no canal, ele vai “desbugar”. Só que eu não sou muito de ser youtuber, então resolvi criar um blog. É onde eu conseguia me expressar mais, com conteúdo mais relevante também. E comecei a ficar mais no blog do que no canal.

A partir do Disbuga, você fala também sobre gênero e deficiência. Um dos posts do blog é o “Não é feminismo se não tiver mulheres com deficiência”. Quais os desafios do movimento feminista em ser mais inclusivo?
F: Eu acho que falta, de um modo geral, às mulheres que não tem deficiência, compreenderem a existência das mulheres que tem deficiência. A gente tem um tipo de opressão que atua sobre os corpos com deficiência que a gente chama de capacitismo. Ele, do mesmo modo que o racismo, o machismo e a homofobia, é estrutural. Então, você classifica as pessoas de acordo com a sua capacidade. Uma mulher com deficiência não é vista como uma mulher inteira, porque ela não está de acordo com aquilo que é esperado para uma mulher ser. Então, esse é um dos principais desafios: reconhecer a existência do capacitismo, o modo como ele atua sobre as mulheres com deficiência e pensar que esse tipo de opressão opera em camadas. Do mesmo modo que a gente tem a intersecção para falar do movimento negro e feminista, de pensar no quanto que a raça acaba oprimindo ainda mais as mulheres, a gente pensar também que a pessoa com deficiência não é vista como uma pessoa, ela não tem acesso a seus direitos na maioria dos casos, a acessibilidade dos lugares não é legal. Se a gente fizer uma expansão desse pensamento, por exemplo, se uma mulher precisa ir no ginecologista… já parou para pensar como são os consultórios médicos? Já parou para pensar que as vezes essa consulta é extremamente invasiva para uma mulher sem deficiência, imagina para uma mulher com deficiência.

Então, mulheres como eu e outras companheiras com deficiência que são feministas tentamos a todo momento levar esse conhecimento para vocês. Mas muitas vezes não há interesse. Aí que eu acho muito importante um blog como o de vocês abrir espaço para isso, para que a gente construa o nosso feminismo.

As pessoas com deficiência passaram muitos anos em um processo em luta por direitos. Em um dado momento, diversas mulheres com deficiência trouxeram um olhar diferenciado para essa nossa condição. Ou seja, em algum momento da história o feminismo caminhou junto com a deficiência. E não sei o que aconteceu que ele acabou se afastando. Falar sobre deficiência não é falar só sobre corpos doentes, é falar de pessoas. É falar de mulheres que muitas vezes permanecem em um estado de opressão, mulheres que são abusadas, negligenciadas, silenciadas a todo momento. E não vira estatística.

A gente vive em um momento em que se fala muito sobre visibilidade e representatividade. Mas esses são conceitos vazios se a gente não pensá-los também politicamente. Sabemos que as pessoas com deficiência formam um grupo heterogêneo, mas, na sua opinião, no geral quais são as principais demandas políticas das pessoas com deficiência?
F: Acho muito boa essa pergunta sua. A gente fala muito de visibilidade, representatividade, mas tem mesmo alguns discursos feministas de que a gente tem que derrubar o patriarcado, etc, mas se a gente não ocupar os espaços de poder não vamos ter condições de fazer isso. As pessoas com deficiências, como você disse, são um grupo heterogênero, então há demandas muito específicas, mas acho que de um modo geral as principais demandas seriam de garantir acesso aos direitos básicos: uma educação de qualidade, acesso à saúde, ter condições de fazer tratamentos pelo SUS – porque os tratamentos e medicamentos são muito caros e as pessoas não tem acesso a eles -, ter condições de trabalho, poder ocupar lugares de trabalho e não apenas empregos secundários mas também cargo de liderança. Acho que são esferas que a gente pode pensar de modo coletivo, porque, por exemplo, quando se garante educação essa pessoa vai ter qualificação, vai ter uma profissão, vai ter mais condições de entrar no mercado de trabalho e, assim, ser economicamente ativa e não precisar depender de benefícios de governo (não que isso seja ruim, até porque tem casos de deficientes que precisam realmente disso).

Queria finalizar perguntando sobre o Coletivo que você faz parte, o Coletivo Feminista Helen Keller. Qual a proposta e atividades que vocês desenvolvem?
F: O Coletivo Feminista Helen Keller é formado por mulheres com deficiência. Inclusive, o nome da mulher que a gente escolheu pro Coletivo é uma mulher cega, surda e desenvolveu um belíssimo trabalho como feminista, com muita notoriedade na época dela. Vale a pena dar uma pesquisada sobre ela também.

Fizemos o nosso Coletivo porque a gente entende que não vão ser as mulheres sem deficiência que vão construir um feminismo que nos atenda. Somos nós que temos que trazer para vocês que não tem deficiência quais são as nossas pautas. Então, estamos nesse trabalho de representar as mulheres com deficiência que são comumente silenciadas em qualquer tipo de movimento e colocar na pauta as nossas demandas, principalmente politicamente.

A gente se reúne virtualmente, discutimos quais caminhos seguir, quais são as ações que poderemos participar, etc. A gente tem um formulário que está disponível na nossa página para caso alguém queira fazer parte. No momento, estamos recrutando apenas mulheres com deficiência porque a ideia é que a gente consiga levar essa pauta e esse conhecimento para as outras mulheres. Mas quem não é pessoa com deficiência, pode acompanhar nosso trabalho pela página no Facebook e Instagram.

* Entrevista retirada do site Não Me Khalo

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