Xuxa defende usar presos para experiências científicas
A apresentadora Xuxa Meneghel, outrora conhecida como a “Rainha dos Baixinhos”, quando apresentava programa infantil na Rede Globo, participou de uma live sobre direitos dos animais promovida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e defendeu que pessoas presas no sistema carcerário sejam usadas de cobaia em testes de remédios e vacinas. “Acho que, com remédios e outras coisas, eu tenho um pensamento que pode parecer muito ruim para as pessoas, desumano… Na minha opinião, existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas e estão aí pagando seus erros para sempre em prisões, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos”, disparou. “Acho que pelo menos serviriam para alguma coisa antes de morrer, para ajudar a salvar vidas com remédios e com tudo. Aí vem o pessoal dos Direitos Humanos e dizer que não podem ser usados. Mas se são pessoas que está provado que irão passar sessenta, cinquenta anos na cadeia e que irão morrer lá, acho que poderiam usar ao menos um pouco das vidas delas para ajudar outras pessoas. Provando remédios, vacinas, provando tudo nessas pessoas”, completou a apresentadora.
As declarações não pegaram nada bem e Xuxa viu seu nome entrar para os trending topics do Twitter, inclusive com a criação da hashtag #Xuxanazista. Assim, na madrugada deste sábado, ela resolveu se retratar, postando um vídeo no Twitter: “É errado? É errado. Me expressei mal? Me expressei mal. Tô vindo aqui pedindo desculpa a vocês porque eu sei que a gente tem algumas falhas no Brasil, uma delas é essa. Quem sou eu para dizer que essas pessoas estão ali e que devem ficar ali ou morrer ali. Quem sou eu pra fazer isso? E se eu faço isso é que eu tô sendo ruim tanto quanto as outras pessoas que também maltratam outras vidas que não deveriam fazer isso. Então, Anderson França, muito obrigada, e a todos vocês que também me julgaram, prejulgaram e julgaram certo. Eu errei então tô aqui pedindo desculpas a todos vocês. Um beijo. É só isso que eu quis me expressar e realmente foi bem errado”, disse.
O estrago, porém, estava feito e teve repercussões. O historiador Jones Manoel usou a plataforma para criticar o posicionamento de Xuxa e seu pedido de desculpas. Ele afirma que a declaração é “típica do pensamento reacionário, de demonização do ‘pessoal dos direitos humanos’”. “Parece uma típica fala genérica para limpar a imagem sem qualquer reflexão real sobre as raízes, sentidos e significados da fala”, escreveu. Para ele, Xuxa afirma, no vídeo do pedido de desculpas, não ter falado nem pensado em raças, “mas qualquer fala sobre sistema carcerário que não considera isso, tá enganada ou enganando. Tenta justificar sua ‘lógica’ apelando para o estereótipo do “criminoso que estuprou uma criança”(???)”, postou o historiador. A deputada estadual Leci Brandão (PCdoB/SP) também se manifestou no Twitter e foi bem além: “o comentário errático feito pela Xuxa sobre testes em pessoas presas precisa ser debatido. Não se trata somente de pedir desculpas, que são importantes, mas não substituem em nada uma conscientização real sobre um pensamento de fundo fascista, nazista, colonial e escravocrata”, postou.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) organizou, em julho de 2020, o Seminário Questões Raciais e o Poder Judiciário. Sob moderação do conselheiro Mário Guerreiro, os participantes do painel “Negros no Sistema Carcerário e no Cumprimento de Medidas Socioeducativas” destacaram o racismo velado que faz com que o negro já seja considerado criminoso, antes mesmo de ser processado. “Praticamente toda a população carcerária do Brasil é negra. É algo que chama a atenção e precisa ser estudado”, enfatizou o conselheiro. A informação foi reforçada pelos dados apresentados por Edinaldo César Santos Junior, coordenador executivo do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN) e juiz do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE). “Cerca de 63,7% da população carcerária brasileira é formada por negros. E isso são dados de 2017 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen)”, afirmou. “Por que será? Por que são pobres? Por que a maioria dos pobres é negra? O encarceramento tem cor”. Washington Clark dos Santos, diretor-geral substituto do Depen, enfatizou que as pessoas negras recebem penas mais duras quando cometem os mesmos crimes de pessoas brancas.
Edinaldo César Santos Junior apresentou dados que explicam em números a observação feira por Clark. Segundo o magistrado, uma pesquisa da Agência Pública de Jornalismo Investigativo em São Paulo que demonstrou que a quantidade de maconha apreendida com pessoas brancas é, em média, maior do que as negras (1,15kg contra 145 gramas). No entanto os negros são os mais condenados (71,35% contra 64,36% dos brancos). Isso acontece na apreensão de todos os tipos de entorpecentes. “Brancos acabam sendo classificados como usuários enquanto os negros, como traficantes”, explicou. Estes dados comprovam que a fala de Xuxa, indiretamente, está direcionada para a população negra e foi vista por muitos como a fala padrão da chamada “elite branca” brasileira. “Xuxa não está sozinha, ela pensa como a burguesia brasileira, que mantém 34% dos presos sem julgamento”, afirmou Letícia Parks, organizadora do livro A Revolução e o Negro e professora do Esquerda Diário, parte da rede internacional de diários digitais de esquerda, anticapitalistas, socialistas e revolucionários, que no Brasil é impulsionado pelo Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT). A líder do PSOL na Câmara Federal, Talíria Petrone, afirma que “num país em que 40% da população carcerária é de presos sem julgamento e 2/3 são negros, a fala da Xuxa é de uma perversidade sem tamanho. A necessária e importante luta pela libertação animal não pode servir de máscara para racismo e eugenia”.
A fala de Xuxa ocorreu no contexto de sua defesa da vida dos animais, tema da live da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. A apresentadora é notória defensora dos direitos dos animais, mas derrapou em sua argumentação. Ao defender que os animais sejam libertos de seus cativeiros, afirmou que “ninguém tem o direito de prender ninguém. É muito desumano isso”. Ela usa o termo ‘desumano’ para se referir aos animais, mas esquece ao se dirigir aos presidiários. Ao fim e ao cabo, a fala de Xuxa demonstrou toda ignorância social e racial dela, seu desconhecimento da realidade carcerária do país e ainda mostrou que ela vive em uma bolha, que ainda acredita que as pessoas não irão criticá-la ou questioná-la pelo fato dela ter sido a “Rainha dos baixinhos”. Exatamente pelo título que ostenta, Xuxa deveria ter mais cuidado antes de se pronunciar em público. Ela é uma formadora de opinião e suas falas carregam um peso grande no público infanto-juvenil. Uma das causas de que todos nós, inclusive ela, devemos defender é o fim da ideia de que “bandido bom é bandido morto”. Xuxa se mostra favorável à eugenia, teoria que busca produzir uma seleção nas coletividades humanas, baseada em leis genéticas. Com base nela, pessoas com deficiência eram mortas ou esterilizadas pela Alemanha nazista. Defender que presos sejam submetidos a experiências científicas que podem matá-los é uma forma hipócrita de dizer ‘bandido bom é bandido morto’. Dizer que “pelo menos serviriam para alguma coisa antes de morrer” é cruel e desumano. Sim, Xuxa pediu desculpas e isso é ótimo. Porém, fica a dúvida: ela pediu desculpas por que se arrependeu de verdade ou por que percebeu a gigantesca repercussão negativa de suas palavras e de sua imagem?
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