É preciso ouvir e amplificar as Vozes Diversas!
Nestes tempos sombrios de pandemia e pandemônio governamental, procurei seguir novas marés para manter a minha mente saudável! Ingressei em projetos que surgiram, graças a amizades solidárias. Plantei sementes, colhi frutos e hoje sigo caminhos profundos rumo a quem sempre soube que era, mas tinha receio de assumir: ESCRITORA!
Segui a vida escrevendo a minha biografia. Também li as poucas obras que existem sobre histórias de vida de escritoras com deficiência, assisti encontros na internet de coletivas de escrita, fiz cursos de narrativas de memórias, mas sempre encontrei um gigantesco ABISMO entre o mundo literário e a acessibilidade e o protagonismo das escritoras com deficiência!
Por isso, criei a Coletiva de Escrita Girassol um espaço democrático, ético, plural, acessível, diverso e com respeito aos direitos humanos para ouvir e amplificar a voz de TODAS as escritoras com deficiência física, auditiva, visual, intelectual, mental, múltipla e surdocegueira. É um lugar de protagonismo e autoria das mulheres com deficiência para compartilhar suas histórias de vida, memórias, prosas poéticas, auto ficção, poemas, crônicas, contos, romances, produção acadêmica, e textos livres!
Nosso objetivo é a união de forças em prol do compartilhamento de ideias sobre literatura, jornalismo literário, escrita criativa, escrevivências e palavras que brotam do coração e da alma! Uma oportunidade para conversas, divulgação de livros, incentivo à publicação independente, saraus, encontros literários, oficinas e cursos de texto, mentoria para edição de livros, compartilhamento de financiamentos coletivos de obras, releases e comentários sobre escrita. Por isso, se você é escritora ou tem o sonho de ser, entra no site da Coletiva de Escrita Girassol: https://sites.google.com/view/coletiva-girassol/
A vontade de criar a Coletiva surgiu depois que eu participei do Primeiro Levante Feminista no Museu Vozes Diversas, um espaço digital de exposição de arte, cultura e educação não-normativa. Eu declamei seis poemas durante a minha Ocupação Artística. E quando os vídeos foram publicados com total acessibilidade (legendas, Libras e audiodescrição), senti uma vontade enorme de explorar o tema da falta de espaço das escritoras com deficiência no mundo literário. Foi aí que surgiu o lindo e desafiante convite para eu ser a mediadora do Café Polifônico do Museu Vozes Diversas.
A primeira edição aconteceu em junho de 2021 e foi com as escritoras Katia Fonseca e Lola San Martin. Ambas contaram sua vida em autobiografias bem interessantes. Vale a pena assistir.
A segunda edição foi em julho de 20021 e contou com a presença de Jô Nunes e Marcela Calámo, mulheres e mães que falaram sobre Capacitismo e Maternidade. Assistam e opinem.
E a terceira edição será dia 29 de agosto de 2021. O tema será Poesia e Diversidade. E contará com a artista plástica e poeta Júlia Marincek Vicentini e o educador, sociólogo e jornalista Guga Dorea (que já foi entrevistado aqui no Sem Barreiras).
Não percam! Entrem no Canal Vozes Diversas.
E acompanhem com legendas aqui.
Conheça a voz de Aline Prado
Foi durante o Primeiro Levante Feminista do Museu Vozes Diversas que eu conheci a importância do trabalho da Aline Prado. Ela está em cartaz com o espetáculo: “Marias – Um grito no escuro!” para denunciar a violência que as mulheres com cegueira sofrem diariamente!
Aline é atriz com deficiência visual, que começou seus estudos em teatro na cidade de Peruíbe (litoral de São Paulo). Ela se formou em 2017 em artes dramáticas pelo estúdio Centro de Estudos Teatrais e Linguagens Artísticas. Mas desde 2012, trabalha com formação em teatro de rua, e estudos na área de dança, corpo e performance na Cia Pé de Ator.
Aline foi considerada melhor atriz revelação no Festival de Cenas Teatrais em 2017 e no Mapa Cultural Paulista em 2015. Com a pandemia ela começou a estudar e trabalhar com o teatro digital e vídeos performance dentro do Coletivo Libertas. Porém, para conseguir conquistar seu espaço na sociedade, Aline passou por barreiras durante sua vida escolar e na carreira de atriz. Saiba como foi sua história na entrevista que fiz com ela.
Sem Barreiras: Conte como foi sua trajetória escolar até chegar à universidade. Estudou em colégios inclusivos?
Eu comecei os estudos quando tinha cinco anos, depois de tentar vagas em muitas escolas da cidade que diziam não ter como me aceitar porque não eram adaptadas. Em 1995 depois de muita luta, minha mãe conseguiu me colocar na escola pública municipal: Maria Amélia Ribas Campilongo. Lá existiam três salas de recurso: uma para auxiliar os alunos com deficiência visual, outra para pessoas com surdez e outra para pessoas com deficiência intelectual.
Fui alfabetizada em braille e o meu cognitivo foi estimulado. Por isso, em 1999, quando eu tinha nove anos, comecei a frequentar a sala regular da escola, junto com outros alunos. Eu cursava o primeiro do Ensino Fundamental 1. Mas depois de algumas semanas, a professora junto com a coordenação da escola, decidiu que eu tinha que avançar para o segundo ano, pois eu já era alfabetizada.
Eu me lembro que esta escola já trabalhava com inclusão de maneira ampla, pois mesmo antes de eu frequentar a sala regular nós tínhamos contato com todos os alunos, em atividades e brincadeiras comuns entre os anos. A escola era tão inclusiva que os alunos da sala regular tinham aulas de Língua Brasileira de Sinais (Libras) junto com os alunos com surdez e suas professoras.
Porém, em 2002, quando eu fui para o Ensino Fundamental 2, na escola pública estadual: Professor Ottoniel Junqueira, comecei a ter problemas, pois os professores não conseguiam atender às minhas necessidades específicas. Eles tinham mais 40 alunos em sala de aula para ensinar em apenas 50 minutos. Também não existiam livros em Braille, materiais acessíveis como mapas, gráficos, e descrição de imagens. Por isso, eu dependia dos colegas de sala para ditarem a lição que o professor colocava na lousa, e para me ajudarem nos trabalhos escolares. Nos anos 2000 a internet, ainda era uma realidade distante para uma aluna com cegueira de cidade pequena como eu, que não tinha computador em casa, muito menos acesso a tecnologias assistivas.
No Ensino Médio em 2006, eu mudei para a escola estadual: Padre Vitalino Bernini, que começou a trabalhar com a inclusão só a partir do momento que eu entrei. E eles não tinham ideia do que fazer, mas correram atrás e conseguiram alguns livros em braille para mim, um computador que tinha o sistema dosvox (que é um leitor de tela para tornar o computador acessível) e professores que me davam aulas extras em matérias como matemática. O curioso é que essa escola da periferia, teve atitudes mais inclusivas do que a escola do Ensino Fundamental 2.
O que destaco dentro do meu processo escolar, é que as salas de recursos foram fundamentais para a minha formação. Nunca deixei de frequentá-las mesmo quando fazia os cursos livres ou na faculdade. Acredito que o ensino especializado dentro do ambiente escolar inclusivo, é fundamental para o desenvolvimento de uma pessoa com deficiência.
Sem Barreiras: Você passou por situações de discriminação? Quais foram as maiores dificuldades?
Passei por muitos desafios ao longo dos meus estudos. Lembro que teve um ano na sala de recurso (quando eu ainda estava sendo alfabetizada) que a professora não tinha paciência comigo quando eu não entendia a atividade e gritava até me fazer chorar. E só quando contei para a minha mãe o bullying que eu sofria, a professora parou de me agredir emocionalmente.
Em cursos eu também fui discriminada algumas vezes, de forma ‘sutil’. Eles diziam coisas do tipo: “Não podemos falar que você não vai fazer o curso, pois a Lei determina que você faça. Mas vamos avisar que não sabemos como vamos te incluir, pois, não temos materiais adaptados e nem vamos ter verba para adaptar”. E se o curso fosse gratuito, aí que os diretores tornavam tudo mais complicado. Mas mesmo sabendo que eles não me queriam nos cursos, eu fazia todos os que eu tinha vontade! E da forma que dava, pois como eles deixavam claro desde o começo, eles não sabiam o que fazer comigo e davam a desculpa que estavam pesquisando. Mas, as pesquisas não terminavam nunca!
Quando terminei o Ensino Médio com 18 anos sem repetir nenhum ano, tentei entrar na faculdade com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas o exame ainda era inacessível! Por isso, eu não conseguia alcançar a nota necessária para a bolsa de estudos que eu queria cursar. Depois da quinta tentativa eu desisti de entrar na faculdade pelo Enem e busquei outras formas de estudar, como os cursos livres. Mas, depois eu voltei a batalhar, e hoje eu terminei a graduação em História na Universidade Metropolitana de Santos na modalidade de Ensino Educacional à Distância. Foi três anos de muita batalhar, pois o ambiente virtual da faculdade, não me dava autonomia total para fazer as atividades.
Sem Barreiras: Quais os motivos a levaram a se tornar atriz? Em algum momento teve receio que a sua condição de deficiência fosse um empecilho para estudar teatro? Quais foram suas principais conquistas?
O teatro esteve presente na minha vida desde pequena, mas eu nunca pensei que eu me tornaria atriz. O teatro era só um passa tempo. Hoje acredito que não fui eu que escolhi a arte, foi ela quem me escolheu. Aos 18 anos entrei em um curso de teatro, e aí não sai mais! Fazia sempre um curso diferente, procurava aprender cada vez mais, estudava muito sobre o que era ser atriz.
E quando decidi que o teatro seria a minha profissão, eu fui me especializando. Mas, aí começaram a surgir dificuldades. Eu pensava: “Como vou andar sozinha em cena? Como vou explorar o espaço de forma ampla sem perder a poética?” E quando eu comecei a estudar o Teatro de Rua na Cia Pé de Ator, os questionamentos se tornaram maiores. Eu pensava: “Como me locomover em um espaço urbano cheio de intervenções que não são artísticas e nem programadas?”. Às vezes, eu me sentia estranha estando tão próxima do público, mas me apaixonei pela Arte de Rua, e decidi que iria seguir nessa pesquisa. E aos poucos, eu e a companhia de teatro fomos aprendendo.
Porém, ser vista como uma mulher com cegueira que faz teatro reverberou até em um festival, onde o crítico teatral questionou a companhia de teatro dizendo: “Por que a cega era a atriz principal do espetáculo? Por que ela andava sozinha no palco?” Isso mostrou o quanto ele era preconceituoso! O crítico teatral pensava que só porque eu sou cega não tinha capacidade o suficiente para ter direito ao personagem principal. Hoje eu vejo que tive muitas conquistas ao longo da carreira, prêmios, reconhecimentos e viagens. Mas, a minha principal conquista foi quando as pessoas pararam de me ver como a cega que tenta fazer teatro e começaram a me ver como a atriz que é cega.
Sem Barreiras: Você trabalha na Cia Pé de Ator e do Coletivo Libertas junto com atrizes e atores sem deficiência. Você é a única atriz com deficiência da companhia? Falta acessibilidade? Existe preconceito?
A Cia Pé de Ator é a companhia que eu trabalho desde o começo da minha carreira. Eu sou a única atriz com deficiência visual. Quando eu entrei lá foi uma novidade e um desafio, tanto para mim quanto para os outros atores sem deficiência. Eu aprendi muito ao longo desses nove anos em que eu estou trabalhando, pois o Alexandre Andrade que é o diretor da companhia de teatro, desde o começo me auxiliou muito a superar minhas limitações e encontrar soluções de cena para que a falta da visão não se tornasse um problema na minha atuação.
E os atores que passaram na companhia ao longo desses anos, também me ensinaram como é bom trocar experiências, pois independente de deficiência somos atores que estamos em constante aprendizado. Erramos muito, temos limitações diferentes porque somos pessoas diferentes, e podemos contribuir com nossas habilidades, um com o outro.
Conhecei o Coletivo Libertas virtualmente logo que começou a pandemia. É um espaço onde trabalham atores e atrizes com deficiências físicas ou mobilidade reduzida, e cegueira. Hoje estou aprendendo a atuar com pessoas que eu nunca estive presencialmente. E a aprender a descobrir novas maneiras de fazer teatro, procurando investigar essa linguagem de arte virtual que está nascendo e crescendo na pandemia.
Durante a minha trajetória profissional, o importante é que a arte me ensinou que a falta de acessibilidade não está só no teatro ou na cultura, mas principalmente na cabeça de pessoas preconceituosas que limitam o outro a partir das suas próprias percepções de mundo! Não adianta ter rampas ou panfletos em braille se ainda existe o pensamento de que a pessoa com deficiência não é capaz de usar o espaço que lhe proporcionam. Claro que a acessibilidade arquitetônica é essencial para incluir todos com os mesmos direitos. Mas, na minha opinião ainda é pouco! O que falta é abrir a cabeça das pessoas para que entendam que as pessoas com deficiência saem de casa, trabalham, estudam e têm uma vida como qualquer outra.
Conheça a Ocupação de Aline Prado no Levante Feminista do Museu Vozes Diversas.
Comente sobre o Espetáculo: “Marias, um grito no escuro!”.
Participe da Cia Pé de Ator.
E saiba mais sobre o Coletivo Libertas.
E antes de terminar a leitura aqui no Sem Barreiras, passa lá no Museu Vozes Diversas, assiste a minha Ocupação dentro do Primeiro Levante Feminista! – aqui.
E depois vê como foi a minha primeira mediação do Café Polifônico – “A voz das escritoras com deficiência” – aqui.
Para saber o que eu penso sobre mulheres com deficiência, feminismos e outros temas, leiam minha outra coluna neste portal:
https://azmina.com.br/coluna/leandra-migotto-certeza/
E eu também recomendo este artigo bem interessante sobre a questão das nomenclaturas corretas:
https://valeriacg.jusbrasil.com.br/artigos/568078977/pessoa-com-deficiencia-a-adequada-utilizacao-da-nomenclatura-tambem-e-uma-maneira-de-combater-preconceitos
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