Cearense cria óculos anti-Covid para cegos
O projeto faz parte do mestrado profissional em engenharia de software que o mecatrônico industrial e engenheiro de software cearense Sandro Mesquita, de 38 anos, está prestes a concluir no Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), instituição de pesquisa sem fins lucrativos do Porto Digital, um dos principais ecossistemas de inovação do país, instalado na capital pernambucana (ver Pesquisa FAPESP no 299).
O aparelho, em fase final de desenvolvimento, é composto por três partes. A primeira é um dispositivo com uma microcâmera e dois sensores (infravermelho e termal), projetado para ser acoplado à haste de um par de óculos comum. Pesando 80 gramas (g), tem o formato de uma caixa retangular com 10 centímetros (cm) de comprimento, 4 cm de largura e 3 cm de altura.
O segundo componente é formado por um minúsculo computador do modelo Raspberry Pi 4 e uma bateria de lítio. Do tamanho de um pequeno celular, o Raspberry Pi recebe via wi-fi os dados gerados pela câmera e pelos sensores e faz seu processamento. O conjunto, pesando menos de 500 g, foi projetado para ser instalado em uma bolsa, do tipo pochete, que vai na cintura do usuário.
Por fim, o sistema conta com um fone de ouvido sem fio, que capta via bluetooth os sinais processados na bolsa, e alerta o usuário para situações de risco (ver infográfico na página abaixo). “Empregamos recursos de inteligência artificial para processar as informações captadas pela microcâmera e sensores, que possibilitam a identificação de faces e o uso correto de máscara”, explica Mesquita.
Uma tecnologia parecida, porém, com menos recursos, está sendo desenvolvida no Instituto de Tecnologia de Karlsruhe, na Alemanha. O protótipo alemão utiliza um modelo de óculos comercial, o chinês KR-Vision, combinado a uma câmera RGB-D, similar à tecnologia Kinect, usada pelo console de videogame Xbox para capturar movimentos do usuário e transmiti-los para a ação dos games. Ao mesmo tempo que lê as cores (sistema RGB), diferenciando seres humanos de objetos, o D da sigla significa que a câmera tem um sensor capaz de fazer uma leitura de profundidade (depth, em inglês), informando ao cego a proximidade com outros indivíduos.
O sistema alemão, contudo, não fornece informações sobre o uso de máscara ou a temperatura corporal de quem está ao redor. Ele é maior e mais pesado do que o kit desenvolvido por Mesquita. Os óculos com a câmera acoplada pesam quase 400 g e o processador e a bateria, acomodados em uma mochila nas costas, cerca de 3 quilos (kg). “O próximo passo é miniaturizar nosso protótipo, substituindo o laptop, onde as informações são processadas, por um aparelho portátil, do tamanho de um celular”, declarou a Pesquisa FAPESP o engenheiro mecatrônico Manuel Martinez Torres, que lidera a iniciativa alemã.
Ajustando o foco – Iniciado em 2018, o projeto brasileiro nasceu com outro foco. “Tudo começou com meus alunos de ensino médio em eletrotécnica da Escola Estadual de Ensino Profissional Pedro Queiroz de Lima, em Beberibe, no Ceará. Construímos um par de óculos com sensores comuns para auxiliar cegos a identificar obstáculos no caminho, como postes ou latas de lixo. Ao detectar um deles, os óculos vibravam e apitavam”, recorda-se Mesquita.
No ano seguinte, ao começar o mestrado no Cesar, ele decidiu dar continuidade ao desenvolvimento dos óculos, com a parceira de Tiago Diógenes de Araújo, aluno de Mesquita no curso de ciência da computação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. Quando a pandemia eclodiu, o pesquisador redefiniu o escopo do projeto. “Um dia ouvi na TV uma autoridade de saúde orientando a população a manter distância de 1,5 m de outras pessoas e evitar se aproximar de quem não usasse máscara ou estivesse espirrando. Pensei: como um cego observa essas coisas? Vi ali a oportunidade de mudar o rumo do trabalho”, recorda-se Mesquita.
Embora o protótipo do Cesar tenha apresentado bons resultados nos testes, o advogado Marcelo Panico, da Fundação Dorina Nowill para Cegos, de São Paulo, alerta para um desafio que precisa ser considerado na criação de tecnologias assistivas para cegos. “Pessoas cegas ou com baixa visão que aprendem as técnicas de OM (Orientação e Mobilidade) devem ficar muito atentas, principalmente nas ruas, aos outros sentidos. O excesso de informação, em vez de ajudar, pode dificultar o entendimento do espaço”, diz.
Panico, que perdeu a visão em 2003, quando tinha 33 anos, usa a própria experiência para ilustrar o argumento. “Eu mesmo já participei de testes com óculos que identificam rostos e funcionaram bem em locais fechados, com pouco barulho. Porém se mostraram ineficientes em lugares abertos, com muito público, dificultando minha compreensão do espaço onde estava.”
Mesquita diz conhecer essas dificuldades. “O indivíduo que não enxerga costuma ter o ouvido muito aguçado. Os alertas vindos do aparelho concorrem com a audição de um dos ouvidos, atrapalhando sua orientação”, reconhece o engenheiro. “Uma solução para esse problema poderia ser testar um fone que emita o som por condução óssea. O acessório fica em contato com a pele, mas fora do ouvido, sem obstruir o canal auditivo do usuário. Assim, o ouvido que recebe as mensagens pode captar os sons do ambiente sem interferências.” Essa solução ainda não foi desenvolvida por ele.
Ao mesmo tempo que existem desafios para a melhoria do invento, há potencial para que tecnologias desenvolvidas para os óculos tenham outras finalidades, com destaque para a leitura facial atestando o uso correto da máscara. “Os algoritmos para reconhecimento facial, programados para procurar uma máscara no rosto da pessoa, já são empregados, por exemplo, para autorizar a entrada de pessoas no Cesar durante a pandemia”, explica o engenheiro de software Victor Hazin da Rocha, orientador de Mesquita. “A tecnologia poderá ser utilizada também em câmeras para monitorar o uso de máscaras em ambientes diversos, como supermercados, aeroportos e parques.”
O próximo desafio de Mesquita é desenvolver sensores específicos para cada função do sistema e integrá-los a um mesmo circuito, também projetado exclusivamente para o aparelho – hoje, o protótipo utiliza sensores genéricos. Para isso, espera obter apoio de órgãos de fomento ou de empresas privadas. Em seguida, planeja viabilizar a produção do kit em larga escala. “Nosso objetivo final é desenvolver uma tecnologia social com custo mais acessível, em torno de R$ 800, e colocá-la à disposição de pessoas com deficiência visual que hoje não são atendidas em suas necessidades e enfrentam dificuldades por causa da pandemia de Covid-19.”
* Artigo científico MARTINEZ, M. et al. Helping the blind to get through Covid-19: Social distancing assistant using real-time semantic segmentation on RGB-D video. Sensors. 12 set. 2020.
** Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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