Camuflagem social como mais um “rótulo” para excluir?

03/12/2022 Artigos, Deficiência Intelectual, Depoimentos, Martha Moreira (Psicóloga), Notícias 0
Garotinho deitado de bruços, brincando com dois bloquinhos coloridos, um amarelo e outro azul

Estudos mostram que a proporção entre meninos e meninas com autismo é de 4:1, ou seja, existem quatro vezes mais meninos do que meninas.

Como toda expressão usada para caracterizar comportamentos, precisamos ter ao menos dois cuidados. O primeiro cuidado: criar um estereótipo, um “rótulo” relacionado à pessoa que vive com autismo. O autismo é hoje – para além das classificações e diagnósticos da área da psiquiatria – uma característica pessoal, mais uma forma de existência legitima no mundo. Esse reconhecimento conta com as muitas lutas existentes vindas do mundo das lutas por direitos de pessoas que vivem e convivem com o autismo. O segundo cuidado: o autismo não dá conta da diversidade de expressões de ser, estar, e relacionar-se das pessoas com autismo. Ou seja, o nome “autismo” pode encobrir muitas diferenças em seu interior porque as diferenças vão se apresentar como habilidades, jeitos próprios de lidar com as necessidades que se colocam no dia-a-dia. Muitas habilidades serão desenvolvidas para equilibrar emoções e suas expressões frente as interações entre a pessoa, seu meio e as solicitações e desafios que este meio coloca. E aí as interações revelam-se no encontro entre as diferenças que emergem, aparecem, nos encontros, nas maneiras como devemos nos comportar, como desejamos ser vistos.

Lembro aqui de um livro muito interessante que se chama A Diferença Invisível, de Mademoseille Caroline e Julie Dachez, publicado pela Editora Nemo. Este livro tem como personagem principal – e destaco que seu estilo é das HQs, histórias em quadrinhos – uma jovem que “descobre-se” uma mulher com Transtorno do Espectro Autista após “encontrar” uma associação de pessoas que vivem com essa condição, como ela, encontrar “outros iguais a ela”. Nesse encontro, ela se sente confortável e muda sua vida. Até então, ela vivia, trabalhava, namorava, mas se sentia deslocada pelos barulhos que lhe incomodavam, pelos convites para ambientes sociais que nem sempre queria estar. Convido os leitores e leitoras a esta obra.

Por que trago este livro para nossa conversa? Porque este relato autobiográfico pode nos ajudar a compreender que pessoas que vivem “no espectro” podem e devem estar entre nós, em muitos espaços, mas exigindo serem reconhecidas com necessidades na interação com o ambiente, que precisamos reconhecer como legitimas. E dentre estas formas de existir, pode-se configurar esta necessidade de apresentar uma adequação de seu comportamento às exigências de uma forma “esperada de comportar-se” no meio social: isto que chamamos de camuflagem social. Mas, o que gostaria de destacar aqui é que, em alguma medida, TODOS, TODAS e TODES construímos formas e habilidades de nos apresentarmos publicamente, adequando nossa forma de estar ao ambiente e suas exigências. Vou dar um exemplo: como nos vestimos em casa? Como nos arrumamos para ir à praia, ao cinema, à escola, faculdade, ao trabalho? Vamos sempre com a mesma roupa ou escolhemos aquela que acreditamos que será “nossa melhor apresentação”?

A chamada “camuflagem social” é, neste sentido, equivalente a este exercício de encontrar “a roupa que melhor nos veste” para nos apresentarmos publicamente, adequando o que é nosso – próprio a nossas muitas habilidades de expressão de sentimentos, de capacidades – e o que o ambiente nos exige. Dentre estas habilidades sociais, há uma “exigência silenciosa” de que estejamos adequados aos lugares que frequentamos com “capacidades esperadas”. As pessoas com autismo, assim como as pessoas com deficiências intelectuais, físicas, sensoriais (auditivas e visuais) e as múltiplas, acabam por denunciar essas “regras silenciosas” e arbitrárias, que acabam por funcionar de acordo com padrões de corpo, raça, gênero, classe. Ou seja, não contemplam o mundo da deficiência nem as diferenças que estas pessoas carregam como direito a existir e a lutar para fazer com que a sociedade reconheça e venha a garantir direitos legítimos à diferença, sem exclusão e segregação.

Em síntese, no autismo, as exigências do meio sobre as pessoas que com ele vivem podem ser vividas como violências que não respeitam as necessidades por ambientes mais acolhedores, com estímulos que não sejam vividos como invasões, como insuportáveis. Isso para os autistas, mas também para outras deficiências com suas necessidades e para pessoas sem deficiência, que também vão ter suas expressões de necessidades diferenciadas. A “camuflagem social”, portanto, é uma estratégia, uma expressão da nossa humanidade na relação entre subjetividade e interações sociais, um retrato das nossas interdependências que devem ser respeitadas.

Texto escrito por Martha Moreira (Psicóloga, Especialista em Saúde Mental, Mestre em Saúde Pública, PdH em Ciências Humanas; Pesquisadora e Professora IFF/FIOCRUZ)

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