Pelos no corpo de uma mulher enfurecem aqueles que não gostam de mulheres
Por muito tempo o feminismo foi reduzido a uma cartilha de escolhas pessoais. Feministas, afinal, são mulheres que lutam pelo direito de ter pelos debaixo do braço.
A tentativa de se ridicularizar uma luta que nada diz respeito a decisões de ordem individual é ferramenta antiga no combate a lutas emancipatórias. Ridicularizar para diminuir e, assim, enfraquecer.
A pergunta “por que pelos no corpo de uma mulher incomodam tanto?” é uma dessas que podem nos levar a refletir de modo mais profundo sobre o que está em jogo.
Essa semana a atriz Bruna Linzmeyer foi atacada nas redes sociais por exibir seu corpo livre na praia em um momento de alegria. O pecado de Bruna foi ter pelos debaixo do braço.
Por que a sociedade em que vivemos acha que pode legislar sobre corpos de mulher?
Pelos nas axilas masculinas não causam fúria, mas na da mulher sim. O que está inscrito nessa discrepância?
Desde sempre temos nossos corpos regulados. Fecha a perna. Não vai sair com essa roupa. Mulher usa salto. Mulher precisa se maquiar. Mulher usa saia. Mulher precisa ser magra. Precisa cuidar da pele do rosto. Mulher não pode andar por aí de qualquer jeito.
As roupas consideradas corretas são aquelas que mais limitam nossos movimentos: saltos e vestimentas muito justas. Quanto mais alto o salto, mais chique. Quanto mais justa a roupa, melhor. Ser muito magra é imperativo moral categórico para mulheres.
Ter pouco ou nenhum pelo idem.
O que está por trás dessa domesticação de nossos corpos e quem ganha com ela?
Sabemos quem não ganha: meninas e mulheres que crescem reprimidas e sexualizadas desde os dez anos de idade.
Trata-se de um sistema tão perverso que em pouco tempo o opressor está internalizado em nós mesmas que, de imediato, passamos não só a acreditar nesse sistema como nos tornamos policiais na luta pela manutenção dele.
Ter ou não ter pelos é escolha pessoal.
Diz tanto respeito ao feminismo quanto a Mônica de Mauricio de Souza diz respeito ao bullying.
Homens que não gostam de pelos e que exigem que a mulher com quem vão transar se depile são homens que, mesmo sendo heterossexuais, não gostam de mulheres.
Se não gosta do pelo, não gosta do cheiro e não gosta da aparência é porque não gosta da fruta.
E se não gosta mesmo de pelos poderia começar depilando a si mesmo. Com cera quente.
Muitas dessas tecnologias de embelezamento às quais nos encorajam a se submeter desde cedo são tecnologias de tortura que a gente acaba naturalizando em nome de um padrão cruel e opressor.
Continuar debatendo pelos ou não pelos não vai ajudar a gente a sair desse estado violento de coisas.
O debate precisa ser alargado.
Estamos falando de delinquência contra mulheres, estamos falando da domesticação de nossos corpos por uma sociedade adoentada. Estamos falando da mulher como propriedade de um homem e de uma sociedade. Estamos falando de uma estrutura que no começo do dia diz se podemos ou não ter pelos e à noite nos mata.
O resultado de quatro anos de um governo que prega o machismo e a misoginia com palavras e ações é o aumento real do feminicídio: a cada seis horas uma mulher é morta apenas por ser mulher.
Morta por maridos, namorados, peguetes, paqueras. Morta por não responder ao comando e às exigências criminosas do sistema patriarcal.
Do que não estamos falando, porque isso é simplesmente um desvio do tema, é de pelos.
* Texto da jornalista e colunista do UOl, Milly Lacombe.
Sem nenhum comentário