“Nós somos uma família com deficiência”
O nascimento do primeiro filho de um jovem casal é, certamente, o momento de maior expectativa e emoção na maioria dos casos. Não foi diferente com Samuel Nogueira Lima e Luciana Vieira Carneiro. Há onze anos, Luciana descobriu estar grávida do primeiro filho deles. Três meses depois, a alegria foi dobrada ao saberem que ela esperava gêmeos. Contudo, junto à notícia dos dois bebês, veio também a informação de que a então estudante de Direito tinha o que a ciência chama de gestação gemelar “mono-mono” (monocoriônica-monoamniótica), um tipo raríssimo de gravidez que acomete a cerca de 1% das mulheres, ou 1 a cada 35 mil casos. Os dois bebês dividiam a mesma placenta e a mesma bolsa amniótica. Luciana, que fazia um ultrassom mensal, passou a fazer semanalmente, dado o perigo daquele tipo de gestação. Com seis meses e meio, o exame detectou que um dos bebês estava em sofrimento fetal e o médico determinou que o parto deveria ser feito no dia seguinte. Alice e Laura vieram ao mundo e, da sala de parto, seguiram direto para a UTI Neonatal. Alice nasceu com 1kg e apresentava derrame periventricular. Laura era menorzinha, 750 gramas, mas tinha saúde normal.
Um mês se passou e Alice não apresentava um desenvolvimento esperado pelos médicos. Estava muito parada e com poucas reações. “Eles fizeram uma nova tomografia e descobriram que havia várias áreas do cérebro dela inativas, vários neurônios mortos”, contou Luciana, apontando a hipóxia como responsável pelo quadro. Hipóxia cerebral (o termo patológico é encefalopatia hipóxica) é uma condição na qual há diminuição no suprimento de oxigênio no cérebro (isquêmia), afetando partes do mesmo, ainda que haja fluxo de sangue (diferenciando de isquemia cerebral). Luciana lembra a dor no momento da revelação e, mais ainda, pela atitude da médica de então. “Não gosto nem de lembrar do nome da neuro porque ela teve um approach (abordagem) muito inapropriado comigo”, falou. Segundo ela, a médica se aproximou e disse, dentro da UTI, na frente de todos, que “sua filha quase não tem cérebro”. Em seguida, ficou conversando com outra profissional, ignorando completamente a presença da mãe ali. A advogada guardou o diagnóstico do marido por três meses, numa tentativa de preservá-lo. “Se um desmorona, o outro tem de permanecer firme; depois, nós invertemos”, explicou como funciona a dinâmica do casal.
Alice chegou a pesar 750g e teve sua sobrevivência posta em risco pelos médicos. Laura, que nasceu menor e mais frágil, atingiu 540g, mas não tinha sinais de qualquer condição negativa. As crianças continuaram na UTI por três meses, sendo amamentadas e lutando por suas vidas. Samuel conta, em artigo publicado em Sem Barreiras, que Alice foi medicada com Imipenem e Vancomicina. O Imipenem é um antibiótico β-lactâmico intravenoso. Já a Vancomicina é um antibiótico glicopéptidico usado no tratamento das infecções bacterianas. “Acho que só chorei assim duas vezes na minha vida e a outra vez foi quando peguei a ressonância magnética da minha filha e vi que ela não tinha várias partes do cérebro e, como sou uma pessoa que leio de tudo, já supunha o diagnóstico”, conta o dentista Samuel Lima. Alice foi diagnosticada com Paralisia Cerebral Espástica com Quadriplegia, um distúrbio do desenvolvimento causado por danos no cérebro antes do nascimento, durante o parto, ou nos primeiros anos de vida, que impede o desenvolvimento normal da função motora.
Samuel e Luciana levaram suas filhas para casa e, três meses depois, ela foi aprovada em um concurso para Defensoria Pública do Estado de Alagoas. Inicialmente, foi lotada no interior do estado. Luciana se mudou, “de mala e cuia”, para terras alagoanas, levando duas bebês de seis meses de vida, uma delas com paralisia cerebral, ainda amamentando, sem experiência profissional, pois era recém formada, e sem o marido. Samuel servia na Base Aérea de Fortaleza e não pôde seguir com a família, de imediato. Ela contou com a mãe para ajudar com as meninas enquanto trabalhava. Porém, Luciana afirma que esta não foi a maior dificuldade que a família enfrentou. “Nosso maior problema foi montar uma rede de apoio e proteção, de médicos e amigos, fundamental em qualquer família com deficiência”. Por um tempo, as meninas continuaram sendo atendidas pelos médicos daqui de Fortaleza. Escola foi outro problema. “É como você estar em um país estranho e ter de aprender uma linguagem toda nova”, exemplificou.
Uma coisa que chama a atenção na relação do casal Samuel e Luciana é o mergulho que eles fazem na deficiência. Durante os 90 minutos de Bate-Papo que eles tiveram no canal do Blog Sem Barreiras, do Youtube, no último dia 04 de janeiro, os dois usaram a expressão “somos uma família com deficiência” diversas vezes. Esta naturalidade se mostra bastante frutífera ao explicar a relação das irmãs Laura e Olívia com a condição de Alice. “Sempre foi muito tranquila. Quando perguntam pra Laura por que a irmã dela não fala, ela diz, naturalmente, que ela tem paralisia e não pode andar nem falar”, disse Luciana. A exposição da realidade que eles vivem é outro “segredo” para o sucesso, na opinião de Samuel. “Eu sempre achei que a exposição acaba trazendo a empatia, querendo ou não, no sentido de fazer os outros saberem que essas pessoas existem e precisam ser respeitadas”, disse ele. Cada um a sua maneira, os dois contam como foi sua adaptação, sua aceitação às crises convulsivas de Alice e sua decisão de ter um novo filho. A raridade da condição de Alice ajudou no momento da segunda gravidez. Veio outra menina, Olívia, seis anos. Assistam ao Bate-Papo Sem Barreiras com Samuel e Luciana.
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