Movimento político das PcDs cresce nos anos 1970
A história de luta das pessoas com deficiência no Brasil demorou um pouco para se firmar e pode ser dividido em dois momentos bem distintos no tempo e com objetivos igualmente diversos. Todo o século XIX e os primeiros setenta anos do século XX mostraram um país extremamente distante de qualquer conceito de igualdade e participação popular das pessoas com deficiência. Primeiro, o Brasil era um país imperial (1822-1889), marcado pela sociedade aristocrática, elitista, rural, escravocrata e com limitada participação política e menos ainda conhecimento científico, pouco ou nada propício à assimilação das diferenças, incluindo aí as das pessoas com deficiência, confinadas em casa pela família e, em caso de desordem pública, recolhidas às Santas Casas ou às prisões. Durante o século XX, o Brasil conviveu com dois períodos ditatoriais, o Estado Novo de Getúlio Vargas e a Ditadura Civil-Militar. Durante os chamados “anos de chumbo”, os direitos civis e políticos foram cerceados e os direitos sociais não eram desfrutados, prevalecendo a censura e a falta de liberdade. As organizações sociais eram proibidas e perseguidas pelo Regime, punidas com prisão, tortura e morte.
Assim, as ações em prol das pessoas com deficiência partiam do Estado, não das organizações civis. Alguns exemplos podem ser vistos no Decreto n° 82, de 18 de julho de 1841, determinando a fundação do primeiro hospital “destinado privativamente para o tratamento de alienados”, o Hospício Dom Pedro II, vinculado à Santa Casa de Misericórdia, no Rio de janeiro, capital do Império. Em 1854, foi fundado o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e, em 1856, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. Somente os cegos e os surdos eram contemplados com ações para a educação e apenas na capital. Pouca coisa mudou com a Proclamação da República, em 1889. Uma dessas mudanças foi a expansão dos serviços dos citados institutos para outras cidades do país. Contudo, continuaram restritas a cegos e surdos e aos filhos de famílias abastadas. Na metade do século XX, a sociedade civil começou a se mobilizar e foram criadas as Sociedades Pestalozzi (1932) e as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs), em 1954, rompendo com a predominância de cegos e surdos. Ainda na década de 50, o Brasil foi assolado pelo surto de poliomielite, que levou à criação dos centros de reabilitação física.
O cenário das deficiências no Brasil começava a mudar, mas ainda a passos muito lentos, especialmente, em relação às deficiências intelectuais, já denominada de oligofrênica, cretina, imbecil, idiota, débil mental, mongolóide, retardada, excepcional e deficiente mental. Até a metade do século XIX, este tipo de deficiência era considerado uma forma de loucura e era tratada em hospícios. Faltavam estudos profundos, mesmo na Academia. Os primeiros estudos datam do começo do século XX, destacando-se a Monografia da Educação e Tratamento Médico-Pedagógico dos Idiotas, do médico Carlos Eiras, de 1900, a tese Introdução ao Estudo da Deficiência Mental (Oligofrenias), de Clóvis de Faria Alvim, em 1958, e o livro Deficiência Mental, de Stanislau Krynski, publicado em 1969. A expressão “deficiência intelectual”, introduzida oficialmente em 1995, pela Organização das Nações Unidas (ONU), e consagrada, em 2004, no texto da “Declaração de Montreal Sobre Deficiência Intelectual”, passa a vigorar, significando que há um déficit no funcionamento do intelecto, não da mente, como se supunha com a terminologia anterior de ‘deficiência mental’. Até esta data, imperava no país o modelo médico da deficiência, segundo o qual o problema era atribuído apenas ao indivíduo.
A superação do modelo médico, portanto, significava uma virada de chave fundamental na busca e aquisição dos direitos sociais e políticos das pessoas com deficiência. Antes, as dificuldades somente poderiam ser superadas pela intervenção dos especialistas de saúde (médicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, assistentes sociais e outros), ignorando, por completo, o papel das estruturas sociais na opressão e exclusão das pessoas com deficiência, bem como desconhecendo as articulações entre deficiência e fatores sociais, políticos e econômicos. O modelo médico vê a deficiência como uma doença que precisa ser tratada com remédios, internações e intervenção profissional, não como uma mera característica da pessoa, que não a diminui nem a torna excludente do convívio geral. O modelo médico começa a ser questionado pelas pessoas com deficiência e, a partir de meados do século XX, tendo o enfraquecimento da Ditadura Civil-Militar e o início do processo de redemocratização como marcos históricos centrais, observa-se o surgimento de organizações criadas e geridas pelas próprias pessoas com deficiência. Inicialmente, eram pequenos grupos de amigos e conhecidos, circunscritos ao bairro ou município, sem sede própria, estatuto ou ambição política. A motivação era a solidariedade entre pares. Mas, que viriam a se tornar o embrião das iniciativas de cunho político que surgiriam no final década de 1970 e início da 80.
O eixo principal das novas formas de organização das pessoas com deficiência se contrapunha, fortemente, ao caráter de caridade e assistencialismo que marcou historicamente as ações. Estava em jogo a necessidade de as pessoas com deficiência serem protagonistas na condução das próprias vidas. Cândido Pinto de Melo, bioengenheiro e militante em São Paulo, expressou, no livro História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2010: “o que queremos é que as pessoas com deficiência se tornem agentes da própria história e possam falar eles mesmos de seus problemas, sem intermediários nem tutelas”. Os novos movimentos sociais, dentre os quais o movimento político das pessoas com deficiência, saíram do anonimato, uniram esforços, formaram novas organizações, articularam-se nacionalmente, criaram estratégias de luta para reivindicar igualdade de oportunidades e garantias de direitos. Esse processo se refletiu na Constituição Federal de 1988, chamada carinhosamente pelo então deputado e presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães (1916-1992), de “Constituição Cidadã”.
A Constituição Federal brasileira foi um marco importante no avanço e, também, um referencial de proteção por parte do Estado dos Direitos Humanos dessas pessoas. No período de debates da Constituinte, os grupos de pessoas com deficiência tiveram um protagonismo notável, conseguindo que seus direitos fossem garantidos em várias áreas da existência humana. Da educação à saúde, ao transporte, aos espaços arquitetônicos. Nos últimos vinte anos, importantes passos foram dados. A interação democrática entre Estado e sociedade civil, com a realização inovadora das 1° e 2° Conferências Nacionais dos Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006 e 2008, assim como encontros nacionais de conselhos estaduais ligados ao tema possibilitaram maior participação da sociedade civil na discussão sobre os rumos que o Brasil segue nesta área. As principais decisões adotadas nesses fóruns de ampla participação democrática foram incorporadas integralmente ao 3° Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH3), lançado em dezembro de 2009.
Os investimentos em educação inclusiva foram multiplicados em cinco vezes, elevando de R$ 60 milhões para mais de R$ 300 milhões, entre 2002 e 2010. As ações de reabilitação receberam recursos da ordem de R$ 2,5 bilhões nos últimos oito anos e o Projeto Minha Casa, Minha Vida construirá 2 milhões de unidades respeitando o desenho universal da acessibilidade*. É importante destacar ainda avanços nos marcos institucional e regulatório como o Decreto da Acessibilidade, a Lei de Libras, o Decreto do Cão Guia, a elevação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde) ao status de Secretaria Nacional, 20 anos depois de sua criação em 1989, e a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), em 06 de julho de 2015, pela então presidenta Dilma Rousseff (PT). Também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, a LBI é fruto de décadas de lutas das pessoas com deficiência, é um conjunto de normas que busca garantir igualdade de condições para as pessoas com deficiência exercerem seus direitos e liberdades e promover a inclusão social e a cidadania em todos os ambientes.
* NOTA DA REDAÇÃO: Os dados publicados estão no livro História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, publicado no ano de 2010.
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