Combate à invisibilidade leva ao pertencimento
Aqueles que acompanham Sem Barreiras desde seu início já perceberam que procuramos dar uma abordagem diferenciada a certas datas do calendário nacional. Refiro-me ao Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia dos Namorados e Dia das Crianças. Nossas abordagens são mostrar aos nossos leitores que pessoas com deficiência também fazem parte dessas datas e não devem ser esquecidas, como, infelizmente, a chamada grande mídia faz. Tomemos a data de hoje como exemplo. O calendário nacional marca o dia 12 de outubro como o Dia de Nossa Senhora Aparecida, a santa padroeira do Brasil. Contudo, marca também o Dia das Crianças. Fazendo uma rápida pesquisa em três jornais da capital – O Povo, Diário do Nordeste e O Otimista –, não havia nenhuma menção às crianças com deficiência. Nos três periódicos, estão programações especiais de cultura no Centro Cultural Dragão do Mar, de cinema e distribuição de presentes para crianças de instituições de caridade no Shopping Benfica e ainda matérias sobre a relação das crianças com economia. Nada, nenhuma referência às crianças com deficiência visual, auditiva, motora ou intelectual. Quais as consequências disso?
O “esquecimento” das crianças com deficiência dos jornais gera um problema grave do ponto de vista social. Gera a invisibilidade. Quando a imprensa faz matérias do Dia dos Namorados, por exemplo, e mostra apenas casais de pessoas saudáveis, ela diz à sociedade, de forma indireta, que pessoas com deficiência não namoram. Da mesma forma, quando se esquivam de contar histórias de pais e mães com deficiência ou com filhos deficientes, ela também cria uma realidade tergiversada. É a condição de cidadãos e cidadãs das pessoas com deficiência sendo extirpada, arrancada. Se não podemos ser pais, mães, se não podemos ter pais e mães com deficiência e se não podemos namorar, por que existimos? Essa é a questão social gravíssima que se cria. A invisibilidade não é, necessariamente, um ato de fazer desaparecer fisicamente, mas sim, fazer desaparecer ideologicamente. Se não falamos de algo, se não contamos seus problemas, não denunciamos suas dores ou não anunciamos suas alegrias e conquistas, esse algo desaparece. O problema é que as pessoas com deficiência não desaparecem. Elas continuam existindo, sofrendo, chorando e sendo exiladas. É um ciclo que não acaba nunca.
O Dia das Crianças foi criado no Brasil por decreto do então presidente Arthur Bernardes (1922-1926), em 1924. A data foi escolhida porque, em 12 de outubro de 1923, o Rio de Janeiro sediou o terceiro Congresso Sul-Americano da Criança. Contudo, na década de 50, foi capturada pelo comércio e virou o que vemos até hoje, uma data altamente consumista. Nessa década, a fábrica de brinquedos Estrela e a empresa Johnson & Johnson lançaram a Semana do Bebê Robusto, uma campanha publicitária cujo objetivo era o de celebrar o dia 12 de outubro, fazendo da data um momento de grande comercialização de produtos para crianças. De acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a data deve movimentar, neste ano, o montante de R$ 8,44 bilhões no comércio varejista do país, sendo R$ 206 milhões no Ceará. O Centro Fashion Fortaleza, para se ter uma ideia, espera um aumento de 14% nas vendas nesse Dia das Crianças. Segundo o diretor do Centro, André Pontes, a data é considerada a terceira mais importante para o comércio varejista nacional.
Assim, questiona-se a ideia da data ser importante para lembrarmos o papel da criança em nossa sociedade e cuidarmos de seu bem-estar, sua educação e sua atenção básica de saúde. Infelizmente, o que menos se fala nessa data é desses temas. A infância é a fase da vida de todos nós em que devemos brincar e explorar nossa imaginação, nossa criatividade e estarmos cercados de segurança e amor. É o início de uma jornada que pode durar várias décadas e quando começamos a formar nossa personalidade, nosso caráter e nossa visão de mundo. Porém, como fazer isso se somos, rotineiramente, deixados de lado? O Censo Escolar de 2020 afirma que existem 1,3 milhão de crianças e jovens com deficiência nas escolas. Levando em conta que o Brasil possui uma altíssima evasão escolar, podemos supor que o número de crianças com alguma deficiência é muito maior do que esse. Pois bem: é esse grande universo de pequenos cidadãos e cidadãs que são deixados de fora das programações culturais no Dia das Crianças. Quando se faz uma apresentação musical ou de fantoches, há interpretação de Libras? Há audiodescrição para crianças cegas? Os jornais não mencionam, então devo supor que não há. Qual o percentual de parquinhos com brinquedos adaptados para crianças cadeirantes? Irrisório.
A infância também é importante porque é quando a criança começa a ter noções de pertencimento. Pertencimento a uma família, a uma comunidade, a uma sociedade. Ao ser alijada do convívio com as demais de sua idade, ao ver sua condição ser negada pela sociedade, ela crescerá com a noção distorcida de pertencimento. Ela não se sentirá parte da comunidade nem da sociedade. As pessoas com deficiência no Brasil vivem, em sua maioria, dentro de casa e essa realidade começa na infância. Essa é a realidade que ela conhece. Seus sonhos, suas ilusões, suas fantasias são restritas ao seu quarto, aos muros de sua residência. Combater a invisibilidade leva ao pertencimento. Precisamos aproveitar a data de hoje para refletir sobre esse tema. Mas, não podemos parar a reflexão à meia-noite do dia 12 para o dia 13.
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