(Não) é proibido para crianças com deficiência
A educadora Nildes Alencar Lima, irmã do frei Tito de Alencar Lima, disse, certa vez, a Sem Barreiras: “a criança não tem preconceitos. Ela vê um amiguinho com deficiência como alguém para brincar. Se ela demonstrar preconceito, certamente, ela o trouxe de casa”. Na infância, não existem responsabilidades, pressões ou incertezas. Não existem contas a pagar ou decisões a tomar. A criança está cercada e protegida por sua família, recebe amor, carinho e cuidados. Cabe a elas somente brincar, ser feliz e moldar a personalidade e o caráter. Daí porque muitos adultos falam, com frequência, querer voltar aos tempos de criança.
Essas reflexões surgem neste dia 09 de dezembro, em que é celebrado o Dia Nacional da Criança com Deficiência. A data tem o objetivo de chamar a atenção para a necessidade de compreendermos o universo infantil, a importância de respeitarmos seus direitos e incentivarmos a promoção da melhoria de sua qualidade de vida. Não à toa, essa sempre foi uma preocupação de Sem Barreiras, ao denunciar que matérias jornalísticas, raramente, citam as pessoas com deficiência, e as crianças, em coberturas de dia dos pais, dia das mães, dia dos namorados e, mesmo, dia das crianças.
Segundo o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), existem cerca de 240 milhões de crianças com deficiência no mundo. No Brasil, são cerca de 760 mil. Na matéria Dia das Crianças (com deficiência), publicada no Blog Sem Barreiras, é citado o artigo Era uma vez um lugar que excluía as crianças, da jornalista, documentarista e especialista em Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná, Raíssa Melo. A jornalista cita a pesquisa Viver, Brincar e Aprender, de 2018, da Rede Criança Hunsol, em parceria com o Centro Universitário Internacional (UNINTER), que constatou que apenas 4% dos projetos de lei nas capitais brasileiras tratam sobre espaço público e infância. Existem inúmeros projetos, mas quase nada que relacione a criança e a cidade.
A pedagoga Nilse Silvério defende que a criança precisa “vivenciar as ruas, as diferenças, conhecer as pessoas” para desenvolver o sentimento de pertença àquele espaço. Eu complemento: a criança precisa ser amada para aprender a amar e ser respeitada para entender o conceito do respeito ao próximo. Assim, estaremos construindo uma sociedade saudável e igualitária. Contudo, nossa sociedade mantém suas crianças “presas” em condomínios fechados, atrás de smartphones, televisões, videogames e computadores, estimulando a individualidade e não o sentimento de grupo. O sociólogo Rogério Góes, ainda no texto Dia das Crianças (com deficiência), afirma que “uma sociedade que não convive com suas crianças se torna incompleta”.
Vale ressaltar que as pesquisas citadas se referiam às crianças saudáveis, sem deficiência. No entanto, se é difícil a integração de uma criança saudável à sociedade, pelas razões citadas, imaginemos uma criança com deficiência, que sofre toda sorte de preconceitos e carência de instrumentos tecnológicos de auxílio. Crianças com deficiência não escutam ou não enxergam ou não andam ou não entendem o meio em que estão inseridas. Não podem sair de casa porque lhe faltam uma cadeira de rodas, um andajar, um par de muletas. As calçadas são esburacadas e imperfeitas. Os sinais luminosos não funcionam nas ruas ou, simplesmente, não existem. Os prédios não oferecem intérpretes de Libras ou material em braile. Ao fim e ao cabo, não precisa colocar a placa PROIBIDO PARA CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA.
Todo esse processo de exclusão já foi visto e sentido, em outros momentos da história, por negros, pobres, homossexuais e mulheres. Todos eles já foram impedidos de frequentar certos lugares, especificamente, porque são negros, pobres, homossexuais e mulheres. Pessoas com deficiência sofrem a mesma coisa. Para a psicopedagoga Juliana Teodoro, a restrição para crianças em espaços públicos é um “discurso de ódio” e, se formos mais a fundo e lembrarmos do chamado Modelo Médico, mais aqui, vamos perceber que a pessoa com deficiência era vista como doente e a deficiência, a causa de todos os seus males. Assim, a sociedade não precisaria se adaptar a elas. Afinal, pessoas doentes ficam em casa ou em hospitais.
Embora o Brasil seja conhecido por sua riqueza de leis e decretos em prol das pessoas com deficiência, falta muita coisa. A Lei 219/2014, de autoria do ex-Senador Vicentinho Alves (SD/TO), prevê “a obrigatoriedade da oferta, em espaços de uso público, de brinquedos e equipamentos de lazer adaptados para utilização por pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida”. São, no mínimo, 5% dos brinquedos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reconhece o direito “às oportunidades de lazer, de maneira que a criança atinja a mais completa integração social possível e o maior desenvolvimento cultural e espiritual”. Porém, eu pergunto: vocês conhecem alguma praça ou área de lazer que possuam brinquedos acessíveis para crianças com deficiência ou mobilidade reduzida? Quantas? Onde?
A indústria de brinquedos está começando a acordar para o público infantil com deficiência. A Lego anunciou que fará peças em braile, visando às crianças cegas (aqui). As peças serão feitas com o mesmo número de tachas usadas para as letras e números do alfabeto braile, mas sem perder a compatibilidade com o sistema Lego. A marca australiana Leave It To Leslie, especializada em brinquedos de assistência à infância, inclusivos e multiculturais, lançou uma linha de bonecas e bonecos com características físicas de pessoas com Síndrome de Down (aqui). Um dos ícones da indústria de brinquedos infantis, a boneca Barbie, também se rendeu aos novos tempos e se tornou inclusiva (aqui). A linha Barbie Fashionistas ganhou uma coleção com bonecas com deficiências físicas – Barbie na cadeira de rodas e com prótese na perna.
O lançamento dessas linhas de brinquedos que se assemelham às crianças com deficiência foi uma grande vitória. A criança precisa do conceito da identificação. Meninas negras demoraram décadas para encontrar nas lojas bonecas como elas, não só na cor da pele, mas no formato dos cabelos. Isso contribuiu, significativamente, no aumento da autoestima e no sentimento de pertencimento dessas crianças. O mesmo ocorre com as crianças com deficiência, que podem brincar com uma Barbie cadeirante ou sem uma perna ou cega. A criança entende que sua condição não é mais tão estranha.
Finalmente, precisamos exigir do Poder Público ações concretas para aplicação das leis e uma maior conscientização na sociedade para a inclusão das crianças em todos os espaços. As pessoas com deficiência já percorreram um longo caminho, mas ainda falta. Vamos tentar olhar o mundo pelos olhos das crianças com alguma deficiência ou limitação de movimento e tentar entender como elas se sentem ao serem excluídas dos aniversários dos amiguinhos, das brincadeiras nos parques e pracinhas, das festas de Dia das Crianças. No dia que conseguirmos sentir o que elas sentem, o país vai dar um passo gigantesco rumo ao futuro.
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