Resgate do sonho nos passos da dança
“Na dança, vc tem o poder de se reinventar, ter poderes, ser mais que do um simples ser humano; na dança, você fantasia, fantasia um mundo diferente, onde a música impera e a criação toma de conta”, Leni Lima.
Aos 13 anos, uma queda de um pé de goiaba. Para quem é ou já foi criança, um evento banal e corriqueiro. Aos 15, um incômodo no pé, talvez em decorrência daquela queda. A ida ao médico e a apresentação a um nome esquisito, Doença de Charcot-Marie-Tooth (leia mais embaixo), significaram uma mudança drástica na sua vida, não poderia mais dançar. Essa foi a trajetória de Leni Lima Fernandes, 35, uma jovem como muitas, que dançava e via a dança como poucas. Jazz e balé faziam parte de seu cotidiano. Deficiência e cadeira de rodas, não. Cadeira de rodas, inclusive, era sinônimo de limitação e algo que ela evitava a todo custo. Mesmo com dificuldades para andar, precisando se apoiar entre um passo e outro, Leni não aceitava a idéia de se ver presa a uma cadeira.
O tempo passou e a vida continuou. Terminou seu ensino médio, casou-se e, aos 23 anos, deu à luz seu filho João Victor Fernandes. Aos 30, dois fatos mexeram novamente com sua vida. O primeiro, a dificuldade crescente em andar devido à doença a obrigou a usar uma cadeira de rodas. Levada por uma amiga ao Hospital Sarah Kubitschek, foi aconselhada a usar a cadeira, pois a fraqueza muscular estava grande e ela, logo, não conseguiria mais andar. Logo após o acréscimo deste acessório, sofreu “uma perda na família” (ela prefere não dar mais detalhes). Assim, com a companhia, incentivo e amor do filho, iniciou sua busca pela adaptação como cadeirante. “Foi muito complicado porque eu pensava que minha vida iria acabar ali. Tive de ter muita força para seguir em frente, voltar a estudar, pegar ônibus”, disse Leni em entrevista por telefone na última sexta-feira, 17.
No entanto, se é verdade que Deus escreve certo por linhas tortas, a evangélica Leni Lima teve seu reencontro com a dança três anos atrás. Primeiro, foi o esporte. Natação e basquete começaram a ser praticados. Depois, pelas mãos de uma amiga, chegou ao grupo Fortango e ao projeto Fortango Sem Limite, que ministra aulas de dança de salão para pessoas com deficiência física e visual. Na década de 90, o tango era uma dança praticada apenas em círculos fechados e restritos em Fortaleza. Em 1997, o professor carioca Firmino Fernandes, na cidade há um ano, apresentou, ao lado da aluna de dança cearense Maria das Graças Azevedo (Gaga Azevedo), o espetáculo Mi Buenos Aires Querido, no Náutico Atlético Cearense. Em 2003, com a experiência adquirida em viagens e workshops pelo Brasil todo, Gaga Azevedo fundou o Fortango. A menina que caiu do pé de goiaba voltava, agora, a realizar seu sonho. “Eu sinto que nasci para dançar, é o que eu mais amo na vida”, disse Leni.
Leni não tem vergonha em dizer que dança bem, talvez pela paixão que tem pela arte e por todas as dificuldades que enfrentou na vida. Em seu grupo, são cerca de dez cadeirantes dançarinos, que optam por um dos ritmos ou, no caso dela, dançam todos, jazz, samba e o carro-chefe, o tango. Lindemberg Carvalho é um dos professores da Fortango e parceiro de Leni na dança. Ela conta que ele fez um curso preparatório com a também dançarina cadeirante Viviane Macedo e, hoje, encanta as platéias ao lado dessas artistas com limitações. Espere, limitações? “Depois que voltei a dançar, sinto que não há limites para mim. Posso fazer tudo o que quiser”, afirmou Leni. Essa sensação surgiu quando do seu primeiro treino. Vendo que era possível, deixou-se levar pelo vento e a música invadir sua alma. Em sua primeira apresentação formal, ano passado no Shopping Via Sul, sentiu-se uma artista. “Foi maravilhoso, havia camarins, maquiadores, tudo o que existe para qualquer artista”.
Leni lamenta ainda não poder viver da dança. Seu sonho é continuar crescendo na arte e virar professora para futuras dançarinas. Sua auto-estima voltou a crescer e retornou aos estudos. Completou o ensino médio, fez o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e cursa Gerenciamento de Marketing, na Faculdade Fatene. Mora sozinha com o filho e tem nele seu maior incentivador. “Meu filho é meu companheiro, meu amigo e quem mais me apóia. Às vezes, quando viajo, tenho de deixá-lo com minha ex-sogra, que é uma segunda mãe para ele. Mas, sempre que posso, o tenho comigo”, afirmou. Leni está noiva de Anderson Ferreira, jogador de basquete adaptado, e tem planos de casamento. Ao final da conversa, manda um recado para quem passa pelo que ela passou: “jamais desistam da vida nem façam como eu, que pensei que não poderia mais ser feliz nem fazer o que eu tanto amava”. E para o noivo, outro recado, agora mais bem-humorado: “quero ser mãe de novo”.
Serviço:
Grupo Fortango ministra aulas de tango às segundas-feiras, a partir das 20:30hs, no Círculo Militar de Fortaleza, localizado à Rua Canuto de Aguiar, 425, Meireles.
Grupo Fortango Sem Limites ministra aulas para cadeirantes às terças e quintas-feiras, às 10:30hs, e aos sábados para deficientes visuais, também no Círculo Militar de Fortaleza.
Mais informações: www.fortango.com.br
Doença de Charcot-Marie-Tooth – A doença de Charcot-Marie-Tooth (CMT), também conhecida como atrofia peronial muscular (APM), é um conjunto de neuropatias genéticas que afetam os nervos periféricos, podendo apresentar uma sintomatologia muito variada. Esquematicamente, a CMT atinge os nervos periféricos, que conectam a medula espinhal aos músculos, ocasionando uma perturbação na condução dos impulsos nervosos.
Embora relativamente rara, é um dos grupos mais comuns de neuropatias motoras e sensitivas hereditárias (NMSH); em sua forma hipertrófica, apresenta-se na infância (NMSHI). Nos nervos afetados, a condução de sinais fica comprometida, o que causa prejuízos na sensação (diminuição da sensação dos membros, em especial das pernas e pés), movimento, cognição e outras funções dependendo dos nervos envolvidos. A doença caracteriza-se por debilidade e atrofia muscular progressiva da panturrilha (atrofia muscular fibular), podendo ocasionar incapacidade progressiva, com déficits sensitivomotores e problemas ortopédicos (pé cavo). A doença não afeta a esperança de vida, não causa retardo mental e pode afetar homens ou mulheres. Em geral, a CMT evolui lentamente, mas também pode progredir em surtos.
A doença foi descrita pela primeira vez em 1884 por Friedrich Schultze (1848-1934), mas as descrições clássicas foram publicadas em 1886 por Jean-Martin Charcot e Pierre Marie, na França, e Howard Henry Tooth, em Londres. A doença de Charcot-Marie-Tooth não deve ser confundida com a doença de Charcot, também conhecida como esclerose lateral amiotrófica, que é muito mais grave.
* As fotos foram cedidas por Leni Lima
1 Comentário
Parabéns querida Leni! Tenho muito orgulho de ser sua professora. Continue mostrando exemplo de superação para todos nós. Abraços