Preconceito está introjetado na sociedade brasileira
Gosto sempre de lembrar de uma frase do antropólogo e senador Darcy Ribeiro (1922-1997), no programa Roda Viva de 1994, em que ele afirmou que “nossa elite é filha e neta de senhores de escravos”. Por que estou relembrando essa frase agora? Porque ela mostra como a questão do racismo ainda está presente em nossa sociedade, porém do ponto de vista do senhor de escravos. A escravidão começou e terminou por obra e graça da elite. Enquanto foi lucrativo caçar africanos, entulhá-los em navios negreiros e levá-los para terras longínquas das suas para trabalhares, de sol a sol, em condições desumanas, para enriquecer os latifundiários, o fizeram. No dia em que o comércio internacional pressionou e exigiu o fim da escravidão ou não mais negociariam com o Brasil, surgiu a ‘bondosa’ Princesa Isabel e assinou a Lei Áurea (Lei Imperial No. 3.353, de 13 de maio de 1888). Ou seja, o fim do regime escravocrata se deu por conveniência da monarquia e não em razão dos maus tratos ou da dignidade humana. Assim, a escravidão jamais foi encarada como tal e o Brasil nunca refletiu sobre os efeitos e consequências que ela traria.
Atualmente, em 2016, a palavra racismo ainda é um tabu. A imprensa fala dela de maneira quase envergonhada. Afinal, o todo poderoso da Rede Globo, Ali Kamel, escreveu um livro chamado ‘Não Somos Racistas’. As novelas apresentam os negros em posições subalternas – empregadas, porteiros, zeladores ou bandidos. Os telejornais não possuem apresentadores negros. No futebol, característica máxima do brasileiro, o negro só é admitido dentro de campo. Em posições de comando, como treinadores e presidentes, não. Na política, são poucos. No judiciário, menos ainda. Onde estão os negros do país? Estão no meio da rua, procurando seu espaço e sofrendo achaques e ofensas propositais ou não. A questão do racismo é tão séria que o cometemos mesmo sem pensar. No carnaval deste ano, um casal de brancos, que havia adotado um garotinho negro, saiu para desfilar fantasiado de Aladdim (o pai), a princesa Jasmine e o menino foi vestido de Abu, o melhor amigo de Aladdin. O problema é que Abu é um macaco, mas o pai não se atentou para o fato. Em sua opinião, “Abu é o melhor amigo de Aladdin e o Mateus é o meu melhor amigo”. Explicação totalmente aceitável, mas Abu é um macaco e Mateus é negro, uma combinação nada aceitável.
O Brasil não discute preconceito. Não aceita que somos preconceituosos. Esse é um problema grave. Muitas pessoas acreditam que ser racista é ter nojo de negro e não querer sequer perto deles. Mas, racismo, e preconceito por extensão, é muito mais do que isso. É você criar, mesmo que forma inconsciente, dois brasis. No Brasil certo, estão os homens héteros, brancos, saudáveis e ricos nos postos de poder e responsabilidade; no Brasil errado, estão as mulheres, os homossexuais, os negros, os nordestinos, os pobres e as pessoas com deficiência. Aos primeiros, tudo; aos demais, o que sobrar e o que os certos quiserem compartilhar. Isso está introjetado no imaginário e na cultura do brasileiro. Não causa espanto, por exemplo, você chegar a um restaurante de luxo das grandes cidades e não encontrar nenhum negro nas mesas, apenas na cozinha ou no estacionamento, cuidando do seu carro. Alexandra Loras, Consulesa francesa em São Paulo, ofereceu vários pontos de reflexão para essa temática em entrevista ao Programa do Jô (assista aqui). A belíssima negra de 39 anos contou como, por exemplo, é constantemente ignorada em eventos diplomáticos do consulado que ela é dirige. “Em muitos eventos, nos perfilamos para os cumprimentos e algumas pessoas passam por mim sem me cumprimentar”, afirmou. Falou também de como é estranha a relação do brasileiro com as babás em clubes e restaurantes de luxo, especificamente a obrigatoriedade delas se vestirem de branco. Alexandra também comentou a política de cotas do Governo Federal, elogiando a iniciativa por ser o começo para a mudança do quadro atual.
Já me perguntaram se eu sofro ou sofri preconceito. Minha resposta é sim e explico. Jamais me expulsaram de algum lugar por eu ser cadeirante. Contudo, já me impediram de ir em alguns por não existir acessibilidade. Se uma loja tem uma porta muito estreita, se um prédio não tem elevador ou se o único acesso para determinado lugar é um gramado, minha cadeira de rodas não passa e, portanto, não posso ir. Não há placas, dizendo “proibido cadeirantes”, mas há barreiras tão objetivas e diretas quanto. Nas eleições do primeiro turno de 2006, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, meu local de votação, iniciou uma obra uma semana antes do pleito. Ao chegar ao local, o acesso até minha seção estava interditado por tapumes e material de construção. O único acesso era pelo segundo andar e descendo uma escadaria. Tentei negociar com a presidente da seção e com o juiz eleitoral, mas nenhum deles apresentou uma solução para o caso, a não ser quatro homens fortes carregarem minha cadeira escada abaixo e depois escada acima. Não aceitei o risco e não votei em Lula naquela ocasião. Considero isso uma forma de preconceito. Assim como o é também ser alvo de olhares curiosos e perguntas embaraçosas, como se eu sei falar. Cansei de ouvir esse tipo de pergunta.
Escrevi um artigo, há cerca de quinze dias, intitulado A hipocrisia e a falta de cidadania do brasileiro e desmascaram a cada dia (leia aqui), abordando a problemática da amamentação em público. Defendo naquele texto, e reitero aqui, que o brasileiro é hipócrita e ignorante. A palavra ignorante não se refere apenas a grosseiro ou mal educado, mas sim à falta de conhecimento, de discernimento. Uma pessoa olha um deficiente e sua ignorância já determina que ele não sabe falar, que é criança, que é digno de dó e piedade. Ou ainda comete o deslize de Fernando Bustamante, pai do pequeno Mateus, que queria apenas se divertir com o filho. Em sua cabeça e de sua esposa, a cor de Mateus não importa e, por essa razão, não viram problema em fantasiá-lo de macaco. Mas, tem problema porque transmite uma mensagem errônea. Há alguns anos, arremessaram uma banana no jogador Daniel Alves, do Barcelona, fato corriqueiro na Europa. Por aqui, oportunistas ignorantes e incultos criaram uma campanha “Somos todos macacos” para ridicularizar o ato. Racismo não deve ser ridicularizado, mas sim combatido e punido pela Lei. Deve ser encarado com coragem para que ele possa desaparecer da face da Terra.
Patrícia Moreira, a jovem torcedora do Grêmio que chamou o então goleiro santista Aranha de macaco, durante uma partida do Campeonato Brasileiro de 2014, afirmou em várias entrevistas não ser racista. Segundo ela, foi coisa de momento, de exacerbação de seu amor pelo tricolor gaúcho. Mais uma vez, o racismo introjetado no imaginário. Pelé foi procurado para dar sua opinião e, incrivelmente (ou talvez nem tanto) criticou o goleiro Aranha. “O Aranha se precipitou em querer brigar com a torcida. Se eu fosse querer parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todos os jogos iriam parar (…) Temos que coibir o racismo. Mas, não é num lugar público que você vai coibir. Quanto mais se falar, mais vai ter racismo”, afirmou.
E onde é, Pelé, que se deve coibir o racismo? Você mesmo disse que sofreu injúrias e ofensas, há quarenta anos, e se calou. Fez o que sugeriu ao Aranha fazer agora e o racismo não acabou. Então, estranho esse conselho de não se falar do assunto que ele vai terminar naturalmente. Não vai. O mesmo tipo de comentário fez Renato Aragão, que afirmou nunca ter sido criticado por suas “brincadeiras” com Mussum (1941-1994). Você foi sim, Renato, acredite. Essas críticas apenas não chegaram até você. Em suma: o Brasil está décadas atrasado no debate sobre racismo e preconceitos de forma geral. A imprensa ignora o tema, os políticos fingem que não é importante e a sociedade se engana. O primeiro passo é encará-lo. Aceitar que o mal existe. A partir daí, buscar formas de extingui-lo. Só assim, cresceremos como cidadãos e como nação.
* A foto montagem de capa desta matéria foi construída a partir de frases retiradas da fanpage Cantinho dos Cadeirantes (acesse aqui), no Facebook.
5 Comentários
Voce conhece algum numero oficial de racismo na Nigeria?
Infelizmente, não, Gustavo. Abraços.
Sinto um preconceito enrustido na frase usada pelo autor “A belíssima negra de 39 anos”. Qual o sentido do adjetivo belíssima nessa frase que não um preconceito escondido no subconsciente do autor dizendo que ser negra e bonita são coisas antagônicas?
Caro Márcio, sinto muito por essa sua impressão. Mas, ela não poderia estar mais equivocada. Meu comentário foi apenas uma adjetivação simples e comum. Eu a acho mesmo uma belíssima mulher. Não tem absolutamente nenhuma conotação racista. Até porque se eu dissesse “a belíssima loira”, talvez, você não tivesse essa impressão. Não acho nem nunca achei antagônicos negro e bonito. Pelo contrário. Abraços.
Também há preconceito naquele que fica caçando preconceito em tudo.